O cansaço da esperança

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Recentemente, o papa Francisco dirigindo-se às pessoas consagradas, lembrou os danos para a sua igreja, falando de “cansaço da esperança”. A espantosa associação destes dois termos, na boca dum papa que sempre rejubila de alegria faz mergulhar qualquer pessoa que se esforça por manter a esperança a partir das duas extremidades que são a evidência da tristeza do ser humano que sofre o peso da tragédia na história, na sua história. Tudo isso afirmando o ponto Ómega da fé cristã que permanece na ideia de que tudo isso tem um sentido e que no fim de tudo haverá para cada um uma luz acolhedora e pacificadora num paraíso com a cor das nossas esperanças e onde Deus guarda o nosso lugar bem ao quentinho. Ao lado daqueles que nos precederam.

Mesmo assim. Há razões para desesperar por vezes quando nos encontramos confrontados, direta ou indiretamente, com a morte de alguém. Sobretudo se era jovem, bonito, e se tinha tudo para ser feliz hoje e amanhã, realidade e promessa. De donde lhe veio a ideia de acabar com a relação humana, de cortar as pontes com os outros? Onde nasceu essa necessidade interior que o levou a destruir brutalmente, duma só vez, o diálogo com os seus? A levar-nos todos para o universo do insondável silêncio racional e do aparente vazio duma doce conversa interrompida?

A morte não se explica. Não se julga. Deixa depois da sua passagem um sulco de incompreensão e de culpabilidade. Não releva duma mecânica explicativa do tipo causa/efeito. É mistério, escuridão, infelicidade espessa simplesmente. Fugidia. «Não percebo». Ligar este tipo de acontecimentos ao conceito de esperança como tentam fazer os mais valentes, nestes casos, não basta para convencer ou tranquilizar os que sobrevivem a estas provas.

Vive-se o luto.

Não, os mortos não estão connosco, nós é que queremos - custe o que custar – acreditar e permanecer perto deles. Quem já teve a experiência da morte duma pessoa mais próxima, esta injustiça muito frequente – e estamos todos nesse caso – sabe muito bem que o voluntarismo da esperança é uma arma com uma eficácia limitada, que não funciona porque o seu gume perde rapidamente o fio. Qualquer experiência do luto é a da vontade de tentar manter um contacto com a pessoa amada apesar da evidência e da distância que foi posta entre ela e nós.

A morte separa, arranca, e é preciso muita fé ou amor para se convencer de que não passa da primeira etapa dum percurso que leva em direção a uma reunião futura. A morte está efetivamente no centro do que provoca este cansaço de que fala o papa. Cansámo-nos de exercer continuamente a virtude cristã que consiste em dizer-se a propósito de toda a infelicidade que aparece que não passa duma etapa em direção à nossa felicidade futura, um mau momento a passar se tentarmos considerar o resto do caminho. Há também esta insuportável ideia repetida em certas épocas não assim tão distantes de que estas “provas nos são enviadas por Deus” para alimentar a nossa fé e testar a nossa capacidade de esperança. Compreende-se menos o (“ Deus mo deu, Deus mo levou …”) e ainda bem. A esperança cristã, à força de ser levada a contribuição, usa-se e cansa-se se a utilizamos muito. Seria preciso reinventá-la cada manhã.

Há revolta no absurdo? Há, mas também há absurdo na revolta. Aconteça o que acontecer há muitas auroras. Frescas, cinzentas ou radiosas, pálidas ou coloridas. O fundo de tristeza que dá o cansaço da esperança não pode ser combatido por outros sentimentos nascidos do prazer de existir, da paixão de estar no mundo, consigo mesmo, com os outros? Apesar da solidão profunda que deixa a morte dum ser querido continua, na atualidade das nossas existências de rescapados provisórios elementos de felicidade possível. Luzes nas nossas noites.

Há pessoas que nos rodeiam e que apertamos nos braços, seja por ternura, amor, seja por uma amizade tenaz, forte. Há músicas celestiais, Bach, Mozart, Schubert, Chopin, óperas admiráveis que fazem palpitar o coração.

Os filmes magníficos donde saímos perturbados nos nossos afetos e onde as inteligências procuram seguidamente os alimentos, pelo tempo que que teremos para resistir nesta terra, nesta vida. Há livros que nos impedem de morrer estúpido e que nos prendem pelo que há de mais nobre no homem; o espírito e a cultura. Há a beleza duma paisagem, a beleza duma mulher, a ternura, dada ou recebida, a oportunidade duma carícia, o azar dos encontros entre milhares de células humanas que se cruzam e se entrecruzam nas nossas terras, nas nossas cidades. Há um lindo gesto de solidariedade dos outros em relação a nós mesmos, ou o contrário, que aquece o coração tanto do que recebe como do que dá. Há o sorriso dum bebe que descobre após alguns meses neste planeta que a vida, segundo parece, vale a pena ser vivida. Há a ternura duma mão que se aperta do velhinho à velhinha esposa na noite dum mundo cada vez mais difícil. Há a ternura desordenada da mão duma mãe velhinha que acaricia no regaço o seu filho cansado. Existe a beleza dum êxito desportivo, como nós seríamos incapazes de o fazer, deixando aos mais fortes o cuidado de nos maravilhar. Há tudo isso e muitas mais coisas que valem por preencherem as nossas vidas, por revigorar as nossas esperanças terrestres.

Tudo isso não impede em nada de considerar com lucidez e por vezes raiva a estupidez humana presa ao choque de interesses e ao gosto pelo poder. Tudo isso não impede de tomar partido com firmeza pelo partido da justiça e da verdade contra a generalização da falsidade e da maldade. De denunciar os impostores que, pelo que parece, nos nossos dias, são cada vez mais numerosos entre os dirigentes do mundo. Há isso e muito mais coisas que valem a pena por preencherem as nossas vidas, por alimentar as nossas esperanças terrestres.

Depois de tudo isto pode haver, entre os prazeres da existência o de considerar a batalha planetária que vivem, cada um na sua especialidade, os imbecis e os escroques na sua competição pela estupidez recorde e a idiotice máxima. Pode ser um prazer estético, denunciar tudo isso porque, apesar de tudo é preciso, duma forma ou de outra, denunciando as travessuras do tempo, reforçar as nossas defesas para melhor vingar o cansaço da esperança, rebaixando-o ao estatuto de tentação.

Adriano Valadar