Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Tu Bishvat – o ano novo das árvores o Tu BiShvat / וט טבשב de Ana Doce

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Tu Bishvat é nome hebraico de uma festa que os judeus celebram no dia 15 do mês de shevat que, no calendário gregoriano, varia entre meados de janeiro e meados de fevereiro. Neste ano calhou a 21 de janeiro, começando, naturalmente, ao anoitecer do dia anterior.

É a festa das árvores, simbolizando o renascer da natureza, o dia em que o Criador decide sobre a floração e os frutos que as árvores vão dar. Geralmente aparece simbolizada por uma amendoeira, certamente por ser a árvore que, no mundo mediterrânico, mais cedo rejuvenesce e se veste de flores.

Era uma festa menor, se assim podemos dizer, para os judeus, mas, nos últimos anos, certamente devido a uma maior consciencialização ambiental, vem ganhando importância crescente. Falamos em festa mas devemos acrescentar: de oração e louvor ao Criador, celebrada com jejum “de estrela a estrela” e com promessas de renascimento do próprio homem.

Percorremos mais de mil processos da inquisição para saber se os marranos de Trás-os-Montes celebravam o Tu Bishvat. Apenas encontrámos uma referência, no processo de Afonso Garcia, cristão-novo, no qual vem inserto um “feito crime” contra sua mulher, Ana Fernandes, mulher de uma sensibilidade incrível e que nem direito a processo próprio teve.(1)

Uma das acusações que lhe fizeram foi a de celebrar festas judaicas e fazer os respetivos jejuns, entre eles o jejum do Tu Bishvat. Essa acusação foi feita pelo Dr. António de Valença, o mais célebre Mestre e divulgador das ideias e práticas judaicas entre os cristãos-novos de Trás-os-Montes, também ele preso pela inquisição e que se tornou o maior dos denunciantes de seus pares.(2) Vejam-se as próprias palavras do processo:

— A dita Ana Doce nunca o deixava senão que ele lhe declarasse as festas dos judeus quando vinham e isto com muitos rogos, para as guardar, disse o dito Mestre António que a dita Ana Doce lhe perguntou no dito tempo que jejuns da rainha Ester que se faz no mês de fevereiro que se chama festa do Purim e assim também lhe perguntou pelo jejum do Tu B´shevat e que aquilo lhe perguntava a dita Ana Doce para os jejuar e que lhe dizia a dita Ana Doce que jejuava aqueles jejuns dos judeus.(3)

Confrontada com esta acusação pelo inquisidor Pedro Álvares Paredes, Ana Doce negou, disse que não fazia jejuns judaicos e acrescentou “que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse no rosto”.

Então, o inquisidor Paredes mandou chamar o Dr. Valença, que em outra cela estava preso, para a trazer à razão e a convencer a confessar seus erros.

Seguiu-se uma cena extraordinária, carregada de lirismo, encanto e desilusão daquela mulher. Apesar da sua frieza e da insensibilidade do funcionário da inquisição, nada mais realista do que o texto do processo, escrito pelo notário do santo ofício. Vejam a saborosa descrição:

— Em Évora aos 21 dias do mês de agosto de 1545, na casa do despacho da santa inquisição, depois que eu, notário li o libelo da justiça a Ana Fernandes Doce, mulher de Afonso Garcia, perante o senhor licenciado Pedro Álvares Paredes, que presente estava, e depois de a dita Ana Fernandes ter contestado o dito libelo por negação, disse ao dito senhor inquisidor que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse a ela, ré, no rosto.

E logo o senhor inquisidor disse que para mais brevidade, para que a dita Ana Fernandes dissesse a verdade e confessasse as suas culpas, mandou chamar e aparecer diante de si o autor Mestre António de Valença, preso neste santo ofício, testemunha da justiça, para que, em sua presença, dissesse à dita Ana Doce que confessasse as suas culpas e pedisse misericórdia. E o dito António de Valença, em presença de mim, notário, em se chegando, tanto que viu a dita Ana Fernandes Doce a abraçou e ela o abraçou a ele, Mestre António, perguntando um ao outro como estava.

Ao qual Mestre António o senhor inquisidor lhe disse que lhe dissesse no rosto à dita Ana Fernandes o que dela sabia e contra ela tinha testemunhado neste santo ofício, de coisas tocantes à nossa santa fé católica.

E o dito Mestre António disse à dita Ana Doce que ele tinha confessado seus pecados e culpas e tinha pedido misericórdia, e que a admoestava, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua, e lhe rogava que ela confessasse tudo aquilo que tinha feito contra a nossa santa fé católica, porque ele, Mestre António, tinha dito nesta inquisição o que ela sabia; e que ela fosse lembrada que havia 3 ou 4 anos, que ela, Ana Doce lhe perguntara por certos jejuns, quando caíam, para os jejuar. E principalmente pelo jejum do Tu B´Shevat, pelo Purim e por outros que ele Mestre António lhe dissera; e portanto ela olhasse o que lhe cumpria e confessasse a verdade.

E a dita Ana Fernandes disse ao mestre António que zombava e que ela não lhe perguntara tal coisa, e que jurasse ele Mestre António aos santos evangelhos, se era verdade o que dizia e que ela perguntara pelos jejuns e festas dos judeus e ele lhos dissera, e que ele jurasse que ela ouviria.

E o dito Mestre António tomou logo um livro dos santos evangelhos que estava na mesa ante o senhor inquisidor e jurou nos ditos santos evangelhos uma vez e duas que ela dita Ana Doce lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus e por outras coisas. E lhe dissera que as queria saber para as guardar e jejuar os ditos jejuns dos judeus, como em seu testemunho se continha. E que ele Mestre António lhos dissera.

Ao que ela, a dita Ana Fernandes respondeu que bem podia ela perguntar a ele Mestre António por alguma mezinha para algum dos seus filhos que tivesse doente com lombrigas, e não por aquilo que ele dizia.

E o dito Mestre António tomou outra vez o dito livro dos evangelhos e lhe tornou a jurar neles que dizia a verdade; e que era verdade que ela lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus, para ela haver de jejuar e guardar como em seu testemunho, e que ele lhos dissera. E que assim mesmo bem podia ser também que lhe perguntasse ela por alguma mezinha para algum dos sitos seus filhos que estivesse enfermo, por ele ser médico.

E logo o senhor inquisidor mandou ao carcereiro que levasse mestre António para o seu cárcere; e depois de levado, a dita Ana Doce disse a ele senhor inquisidor que olhasse sua mercê muito bem por sua justiça, porque ela nunca tal coisa perguntara ao dito Mestre António, como ele agora dissera; mas podia ser que o dito mestre António lhe quisesse mal, por alguma coisa; e que por tanto dizia dela o que ela nunca lhe perguntara.

E o senhor inquisidor a admoestou que dissesse a verdade porque isso era o que lhe cumpria para salvação de sua alma e que esta diligência de trazer o dito Mestre António fizera ele senhor inquisidor para que o dito Mestre António a aconselhasse, para que ela, Ana Doce dissesse a verdade e pedisse misericórdia…(4)

 

Notas:

1 - ANTT, inq. Évora, pº 4637. Afonso Garcia, era cristão-novo, natural de Fermoselhe, morador em Mogadouro onde casou com Ana Fernandes, a Doce, de alcunha. Ambos foram presos pela inquisição, em julho de 1544, acusados e judaísmo. Incerto do processo referido, encontra-se um “feito crime contra Ana Fernandes, mulher de Afonso Garcia, cristã-nova, presa nos cárceres”.

2 - Idem, pº 8232, de António de Valença.

3 - Idem, “feito crime contra Ana Fernandes…” fl. 18.

4 - Idem, fls. 21-23.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães