Nós trasmontanos, sefarditas e marranos: Pantaleão Rodrigues Mogadouro (Lisboa, 1655 – Jamaica, d. 1704)

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De entre os filhos de António Mogadouro e Isabel Henriques que chegaram à maioridade, Pantaleão era o mais novo. Nasceu em Lisboa, na freguesia de S. Nicolau, por 1675. Teria uma educação esmerada, em termos de literacia (aprendeu latim) e contabilidade, pelo que foi logo trabalhar com o primo António Marques, nos escritórios das empresas Mogadouro. E foi este o cenário de uma denúncia, feita em 5.1.1672, por Manuel Ferreira, cristão-velho, cavaleiro de Santiago, familiar do santo ofício, nos seguintes termos:
— Disse que António Rodrigues Marques nunca quis nas três sextas-feiras passadas tomar pena na mão e escrever nos tais dias, depois da noite e só se punha a praticar (falar) com ele e mais pessoas que se achavam na casa. E que nas mesmas sextas-feiras à noite, via que um primo do mesmo, chamado Pantaleão Rodrigues, solteiro, de 18 anos, alimpava a mesa onde escreve os papéis e recolhia o tinteiro, sendo que nas mais noites dos outros dias não viu que ele nem outrem fizessem a diligência, e em todas elas há papéis na mesa (…) na sua lei era proibido fazer serviço algum na sexta-feira depois de se pôr o sol…(1)
Pantaleão Rodrigues foi preso pela inquisição em 9.1.1674, juntamente com suas irmãs Branca, Violante e Beatriz, indo juntar-se ao pai e aos irmãos Diogo e Francisco, presos 2 anos antes. 
Daquelas cadeias apenas saíram vivos os 3 irmãos mais novos: Francisco, Beatriz e Pantaleão, que foram reconciliados no auto da fé de 10.5.1682, com cárcere e hábito penitencial perpétuo. De Francisco e Beatriz, a última notícia que deles temos é um requerimento dirigido aos inquisidores pedindo autorização para comungar.(2)
De Pantaleão Rodrigues, sabemos que cumpriu a sua penitência na igreja de S. Lourenço, a qual lhe foi levantada em 16.5.1683, contra o pagamento de uma fiança de 100 mil réis,(3) por Bento Teixeira, morador na Rua das Mudas.
Posto em liberdade, fugiu para Inglaterra, país onde sua irmã (Marquesa Rodrigues) e seus cunhados (António e Diogo Rodrigues Marques) gozavam de grande reputação social, com uma filha de Marquesa e Diogo casada com o Dr. Fernando Mendes, médico da rainha de Inglaterra.
Em Londres, Pantaleão seria bem recebido e rapidamente ganhou lugar importante no seio da nação sefardita, depois que se fez circuncidar e tomou o nome de Isaac. A ponto de, em 12.2.1699, aquando da assinatura do contrato da construção da sinagoga Bevis Marks, ser um dos 6 líderes da comunidade que assinaram o documento.(4)
Do seu casamento com Raquel pouco sabemos. Apenas que ela era neta de sua tia paterna, Francisca Lopes, de Sambade, que faleceu em Toulouse, na França, mãe de Roque de Leão e aparentada com João Mendes Belisário,(5) também de Sambade. Estranhamente, o seu relacionamento com a irmã e cunhados ter-se-á quebrado e nem sequer fizeram qualquer referência mútua em seus testamentos. Seria por causa do casamento de Pantaleão?  
Facto é que, também a roda da fortuna entrou a desandar e os bens que restavam a Pantaleão eram essencialmente derivados de seguros. A única fonte que temos sobre estas questões é o seu testamento feito em Londres a 22 de maio de 1704. Vejam:
— Encontrando-me eu de cama, declaro que ao sétimo dia depois da minha morte este documento deve ser aberto e para as cerimónias do meu funeral sejam gastas seis até sete libras, até ao final do mês e ano.
Deixo 10 libras para a salvação da minha alma.
Tendo Deus querido diminuir os meus bens, tudo o que tenho está mencionado em baixo.
Do valor dos negros da Índia a Mr. Andrew, Henrique Lopes dará conta dos mesmos. Uns estão acertados e outros não. Assim como o azeite que lhe comprei. O que deve ser feito logo e imediatamente que Deus disponha de mim. E isso se pagará dos meus seguros, dos que tiverem maior prémio, que neste país são facilmente trocados.
Desejo que a minha mulher vá daqui para Amesterdão e que seu tio Roque de Leão tome conta dela e de seus bens.
E que entretanto Mr. Domingos Lopes Ferreira e Joseph Israel Henriques tomem conta dela e como seus administradores e assistentes, a acompanhem a Amesterdão, que deus os recompensará.
A Mr. Belisário, que tem muitos filhos, deixo 5 libras para o casamento do seu primeiro filho.
Declaro que deixo como tutora e administradora de meus filhos a minha mulher Raquel Mogadouro, juntamente com Roque de Leão.
Deixo a Rosa 10 libras.
Tudo o que acima disse, certifico. Londres, 22 de maio de 1704. Isaac Rodrigues Mogadouro. Testemunha: Domingos Lopes Ferreira.

Como se vê, não há a mínima referência aos familiares diretos que residiam em Londres e nem na hora da morte esperava qualquer gesto de aproximação.
Ao contrário, nota-se uma ligação estreita a Roque de Leão, seu primo, morador em Amesterdão, depois de ter fugido de Toulouse onde foi condenado à morte, acusado de ser rabi dos judeus naquela cidade de França. Roque de Leão terá nascido na cadeia do santo ofício onde sua mãe foi encarcerada em 1640.
Pantaleão (Isaac) Rodrigues Mogadouro terá falecido em Londres em 16.6.1704, 14 sivan 5464, conforme consta em “The Burial Register of the Spanish and Portugueses Jews, London 1657-1735”, se bem que alguns autores digam que ele faleceu na Jamaica em data posterior.

 

Notas:
1 - Inq. Lisboa, pº 7100, de Pantaleão Rodrigues Mogadouro.
2 - Idem, pº 4427, de Beatriz Henriques, tif. 251: — Dizem Beatriz Henriques e Francisco Rodrigues (…) que eles saíram reconciliados no auto da fé de 10.5.1682 (…) e nas penitências que lhe foram impostas foi uma suspensão de receberem a sagrada comunhão, e porque de presente estão muito doentes e achacados e querem confessar-se pela obrigação desta quaresma e têm grande consolação de receberem o santíssimo corpo de nosso senhor Jesus Cristo, o que não podem fazer sem licença de VV. Ilustríssimas… Despacho: Concedemos aos suplicantes a licença que pedem. Lisboa, 29.3.1683.
3 - A fiança estipulada ao início ascendia a 800 mil réis.
4 - Outra assinatura que pode ler-se no documento é a de Manuel Nunes de Miranda, filho de do Dr. Francisco Nunes Ramos e sua mulher Ana Rodrigues. Aquele era natural de Vila Flor e esta de Torre de Moncorvo. Moravam em Moncorvo onde o Dr. Nunes Ramos era tido por “kassis” (rabi) da comunidade. Fugiu da inquisição para a Galiza, onde faleceu. O filho Manuel Nunes de Miranda, antes de se fixar em Londres, viveu em Toulouse e foi um grande empresário de turismo, explorando os transportes de barco pelo rio Garone, entre Bordéus e Toulouse e dali, por charretes e cavalgaduras para Marselha. Preso e julgado por judeu em Toulouse, foi condenado à morte. Conseguiu fugir (tal como Roque de Leão e outros, num total de 18), sendo queimados em efígie, em 16.4.1685. – BLAMONT, Jacques – Le Lion et le Moucheron Histoire des Marranes de Toulouse, p. 350 e seguintes, Editions Odile Jacob, Paris, 2000.
5 - João Mendes Belisário era casado com Serafina de Leão, filha de Matias Lopes, irmão de Roque de Leão. Por outro lado, era cunhado de Luís Lopes Penha, primo direito de António Rodrigues Mogadouro. 

 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães