Celebrar o Kipur é condição essencial para ser judeu. E assim o entendiam e praticavam os cristãos-novos de Bragança, ao fim de dois séculos de perseguição inquisitorial e vivência religiosa clandestina. E celebravam-no de forma não muito recatada, juntando-se “em sinagoga” em casas particulares uma dezena e mais de pessoas. Vejamos, por exemplo, uma dessas reuniões, acontecida no Kipur de 1637, contada por Bernardo Lopes de Castro, de 23 anos, solteiro, tecelão de seda: - Há 10 anos, em Bragança, em casa de seu parente Jerónimo Álvares Ramos, tecelão de sedas (…) se achou com (…) e estando todos 16, a saber: ele confitente e os ditos Jerónimo Álvares Ramos, a mulher deste, Bárbara Ferreira, Miguel Cardoso Penha, João Cardoso Penha, José Mendes Borges, Luís Álvares Sá Leão, Laureano de Sá Leão, Alonso Rodrigues Álvares, António Gabriel Pissarro, António Gabriel Ledesma, Manuel Mendes Furtado, Manuel da Costa Carvalho, Gabriel da Paz, Rafael Rodrigues Furtado e seu tio Sebastião Lopes Pereira, tio dele confitente e autor do seu ensino e entre práticas que tiveram se declararam e deram conta como viviam na lei de Moisés e disseram que guardavam os sábados como dias santos, vestindo camisa lavada na sexta-feira à tarde, estando com a cabeça coberta e voltados para o nascente e não comiam carne de porco, lebre, coelho, nem peixe de pele, nem também sangue de animal de qualquer casta que fosse, e faziam o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro, aos 10 dias da lua do mesmo mês, estando sem comer nem beber desde o pôr-do-sol até ao outro dia às mesmas horas e então ceavam coisas que não fossem de carne (…) e que quando davam a bênção a algum afilhado seu, por nenhum caso lha davam em cruz e só abrindo a mão lhe corriam o rosto com ela, e na sexta-feira à tarde concertavam as candeias com azeite limpo e torcidas novas e varriam sempre as casas às avessas e quando lhe morria alguma pessoa parenta ou vizinha e conhecida, não comiam naquele dia e vazavam logo a água que tinham nos cântaros e lhe lançavam outra nova, e que assistindo em casa aonde se amortalhasse algum defunto, faziam muito porque fosse amortalhado em pano novo, e lavado todo o corpo com água e sabão, cortando muito bem as unhas dos pés e mãos, e querendo fazer algum sufrágio pelas almas dos tais defuntos, faziam jejuns judaicos dando algumas esmolas pelas ditas almas contanto que não fossem de coisa que não levasse carne e além do padre- -nosso se encomendam ao Deus dos Céus com a oração seguinte: Alto Deus e grande Deus E Senhor do Mundo todo, Senhor de toda a verdade A minha alma Vos clama Meu coração por Vós alaba E que como servo Vos sirva Em vosso serviço acabe. Amen. A qual oração rezavam todos os dias e com efeito fizeram todos juntos na forma sobredita o jejum do dia grande e se ficaram tratando e comunicando todos dali por diante... Escusado será dizer que todos os referidos participantes na celebração acabaram perseguidos pelo santo ofício e muitos confirmaram a confissão de Bernardo, acrescentando alguns pormenores, como, por exemplo, Laureano de Leão, a dizer que “antes de rezarem lavavam as mãos e na véspera do Kipur lavavam todo o corpo”. Antes de prosseguirmos, uma nota sobre aqueles 16 judeus brigantinos para dizer que todos eles estavam ligados por laços familiares mais ou menos estreitos, oscilando a sua idade entre os 20 e tal e os 40 anos, quase todos fabricantes de sedas. Aqui entra o conceito de nação, com o significado de família alargada, cujos membros rezavam em conjunto, casavam na família e trabalhavam em rede familiar. Membro desta “família-nação” era também Gaspar Dias de Castro, que fez a seguinte confissão perante os inquisidores: - Haverá 12 anos, em Bragança, em casa de seu primo direito, António Gabriel Ledesma (…) para fazer o jejum do dia grande, no qual dia não haviam de tomar tabaco e antes de entrar a fazer o dito jejum se havia de lavar todo o corpo e nesta forma faziam o jejum da Rainha Ester, no princípio do mês de Março (…) também havia de fazer no mês de Junho outro jejum chamado da Sentença, em memória da revogação da sentença de morte que se tinha dado contra os judeus e de que eles, depois, ficaram livres… Outras muitas denúncias foram feitas contra António Gabriel Ledesma, 31 anos, solteiro, tecelão de sedas, natural e morador em Bragança, filho de João Rodrigues Ledesma e Francisca Rosa, o qual foi preso em 22.3.1747 pela inquisição de Coimbra onde, em 31.8.1748 foi submetido a tormento, dando-se-lhe “um trato esperto que durou meia hora, no decurso do qual gritou muito, chamando por Jesus e que não tinha culpas”. O processo transitou para Lisboa e prolongou-se até 8 de Novembro de 1750. Trata-se de um processo do maior interesse, a vários níveis. Antes de mais porque, pelas contraditas apresentadas por António Gabriel, ficamos sabendo como estava organizada a venda e distribuição do tabaco, em Trás-os-Montes, nos anos anteriores à sua prisão. Assim, o contrato de toda a província estava arrematado “in totum” pelo contratador Manuel Rodrigues Gabriel, natural de Bragança. Como tal contrato exigia muito capital disponível, o contratador contava com apoios de retaguarda, nos quais substabelecia o arrendamento. E aqui surge novamente a família- -nação como célula fundamental. Assim, a venda de tabaco na comarca de Torre de Moncorvo ficou entregue a João Gonçalves Gabriel, com o pai de António Gabriel (João Rodrigues Ledesma) no cargo de administrador. Na comarca de Chaves ficou José Rodrigues Peinado, cunhado de João Gabriel e na comarca de Vila Real o monopólio do tabaco foi entregue a Francisco Fernandes Gabriel. Na rede familiar deste negócio estava também o brigantino José de Sá Vargas, possivelmente responsável pela distribuição na comarca de Miranda do Douro que incluía a região de Bragança. E em Bragança, o próprio réu, António Gabriel Ledesma vendia tabaco a retalho, pertencente ao mesmo contrato. O contratador teria já então mudado a sua morada para Lamego, prosseguindo certamente outros contratos e negócios. Também no que respeita ao monopólio do sabão, este processo dá informações interessantes que a escassez de espaço nos impede agora de tratar. Por 3 anos de prisão, o réu manteve-se negativo, dizendo-se católico e repetindo que todas as acusações eram motivadas por ódio e vingança de seus inimigos, que apontava, assim como as testemunhas que podiam fazer prova. Isso fez multiplicar as diligências a Bragança, com as respetivas custas, pois que o comissário local, o escrivão e o notário não trabalhavam de graça. Neste ponto, o processo ganha mais interesse, por mostrar a teia de relações, por vezes contraditórias, entre a comunidade cristã-velha de Bragança, em ralação aos cristãos-novos. O comissário, abade José de Morais Antas, natural de Vimioso não hesitou em dar crédito a testemunhas cristãs-novas e desacreditar cristãos-velhos. Veja-se: - Todas as pessoas cristãs-velhas nomeadas na comissão e artigo supra lhe parece a ele testemunha que presume inimigos dos cristãos-novos são inatendíveis os seu depoimentos, no que respeita a dizer ele testemunha e julgar que são inimigos dos cristãos- -novos é por saber que, em certa ocasião, em um jubileu, antes de ser preso Francisco Furtado Mendonça andaram observando os ditos cristãos-velhos se se confessava antes de comungar; e se persuadiram que não se tinha confessado, vendo-o pôr à mesa da comunhão; e depois se averiguou que se confessara ao padre Francisco Xavier de Sousa Pereira, de cuja observação ficou ele testemunha entendendo que a faziam por inimigos dos cristãos-novos e não por zelo da santa fé católica… Trágicos foram os últimos dias de António Gabriel. Quando o informaram que estava condenado à morte, ele começou a confessar e a pedir perdão, o que levou o tribunal, a aprovar o seguinte despacho, proposto pelo inquisidor Manuel Varejão de Távora: - Pareceu a todos que o assento estava alterado visto dizer de suas irmãs e outras pessoas conjuntas, que não estavam indiciadas, com mostras de arrependimento, mas está diminuto por não dizer de 2 sobrinhos segundos e de outras muitas testemunhas da justiça, e ser útil à justiça a sua confissão no que respeita às irmãs, que ainda não foram presas. E vá ao auto-da-fé e abjure em forma e hábito com insígnias de fogo. Não entendeu assim o Conselho Geral que manteve a condenação à morte. No decurso do auto, António Gabriel pediu para ser ouvido, desdobrando-se em confissões. A sentença foi reavaliada por 3 vezes, mantendo o Conselho Geral a sua decisão. E, estando já no cadafalso, quando a sentença final ia ser lida, pelas 3 horas da tarde, António Gabriel, em alta voz e de desespero, continuou fazendo confissão pública e pedindo misericórdia. Vários membros do tribunal opinaram que o réu deveria ser reservado, para o caso ser melhor analisado. Porém, o Conselho Geral manteve a sentença. Veja-se o teor: - Foram vistas pela quarta vez em Mesa estes autos (…) por que foi mandado relaxar e o mais que disse no cadafalso pelas 3 horas da tarde e a confissão que fez pelas 8 horas da noite (…) que se lhe não poderão tomar judicialmente pela penúria do tempo e hora que o fez (…) nem ser verosímil o que diz no cadafalso à vista de todos os mais réus de Bragança…