Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Manuel Pereira da Mesquita (n. Mirandela, 1655)

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Por 1600, no sítio de Golfeiras, hoje freguesia da cidade de Mirandela, então uma quinta do termo de Lamas de Orelhão, vivia um casal de cristãos-novos constituído por Gaspar Vaz e Mécia de Leão. Tiveram uma filha chamada Violante Nunes que casou com Gabriel Pereira e estes foram os pais do Dr. Mirandela.

Tiveram também um filho chamado Jorge da Mesquita, que casou com Beatriz Pereira, irmã do citado Gabriel. Em 1662, Jorge foi preso pela inquisição de Coimbra(1) e nessa altura era já casado em segundas núpcias, com Maria Pimentel e vivia em Murça de Panoias.

A morada de Jorge e Beatriz era em Mirandela e ali tiveram um filho, nascido por 1655, a que deram o nome de Manuel Pereira da Mesquita. Este aprendeu a profissão de prateiro, que não era limitada à compra e venda de prata mas incluía o fabrico de objetos de uso diário ou de adorno. Era uma profissão de muita dignidade e projeção social.

Casou com Violante Pereira, natural de Vinhais, e foram morar para Chacim, uma terra que então conhecia um grande surto de desenvolvimento, graças a duas indústrias, dominadas pela gente da nação hebreia e que eram: o fabrico da seda e o trato das peles e solas. Aliás, a nação hebreia de Chacim aparecia dividida entre os fabricantes de sedas e os curtidores de peles. Estes moravam na parte baixa da vila, no Bairro da Ribeira e aqueles moravam na zona alta, em redor da Praça do Pelourinho.

Era ali, na Praça, que vivia o Prateiro, em uma casa de sobrado, com quintal anexo, que confrontava com a de Ana Pereira, viúva de António Cardoso e com rua do concelho. A sua oficina dava para a praça e nesta, ele estabelecia mesmo banca de trabalho e tenda de vendas. A propósito, diria Joana Lopes, cristã-nova:

— Observou e viu Manuel Pereira (…) em os sábados de trabalho não fazia coisa alguma, antes o via com os melhores vestidos, de camisa lavada, passeando pelo seu quintal e detrás da igreja, por tudo se descobrir das casas onde ela denunciante vivia, sendo que nos mais dias ia trabalhar para a Praça, na sua tenda de prateiro.

No seio da comunidade eclesiástica de Chacim, Manuel Mesquita era homem de muita consideração, pois que chegou a ser mordomo da Confraria das Chagas e fez que o seu filho fosse nomeado mordomo da Senhora do Rosário, onde costumavam apenas servir os filhos dos cristãos-velhos da nobreza e da governança da terra. E então, “mandou fazer, às suas custas uma imagem dourada e estofada”, que lhe custou 10 mil réis.

Alguns pensarão que a comunidade cristã-nova formava um corpo unido, no seio da sociedade. A realidade, no entanto, era bem diversa e o caso de Manuel Mesquita é, a este respeito, verdadeiramente exemplar. Ele próprio escreveu um texto que poderíamos mesmo apelidar de racista, se o alvo do seu desprezo não fosse gente da sua raça. Vejam apenas um curto excerto:

— Toda a gente curtidora de Chacim me quiseram sempre muito mal e me tiveram grande ódio, por eu nuca vizinhar com eles, nem fazer deles conta para nada; mas antes fugia das suas conversas, porque sempre me tive por mais do que eles; nem me ia a suas casas, nem lhe dava ocasião a eles entrarem na minha, sem coisa de negócio que eu tivesse com eles ou eles comigo (…) tanto me desprezei sempre dos curtidores que, tendo de minha mulher o banco na igreja ao pé das suas, a fiz mudar de assento para que não estivesse misturada com eles e depois se sentou sempre com as mulheres nobres que era com quem nós corríamos e tratávamos e disso o sentiram muito, conhecendo que era por desprezo.(2)

Manuel Mesquita não era o único cristão-novo de Chacim a manifestar desprezo pelos curtidores. Outros testemunhos temos, muito semelhantes, e podemos afirmar que havia uma divisão profunda entre o grupo de cristãos-novos que moravam na parte alta de Chacim e os que moravam na parte baixa. Podiam os curtidores de peles ser muito ricos mas, por se tratar de trabalho sujo, eram desprezados pelos outros, essencialmente fabricantes de seda.

Porém, se o Prateiro se tinha “nos seus tamancos” e desprezava os outros, também ele era desprezado por uma parte da família que se considerava superior. Eram os seus parentes, que frequentavam o palácio dos Távoras. Gabriel Pereira, seu tio materno, era um deles. Vejam o que ele dizia:

— Tinham outro parentesco, por direito lado, em Chacim, Manuel Rodrigues Pereira, Manuel Pereira da Mesquita e outros (…) costumavam todos os desta parentela dizer que ele réu e seus tios e cunhados eram fidalgos, que não costumavam falar senão com homens graves e dignos (…) e falecendo Duarte Lopes Pereira, em Alfândega da Fé e indo a enterrar-se em Mirandela, por ser parente do réu, tios e cunhados trataram de lhes fazer as exéquias, com pompa o funeral a que assistiram os marqueses de Távora e homens cavaleiros daquelas terras e não deram recado aos ditos Manuel Rodrigues que era irmão do defunto, nem a Manuel Pereira da Mesquita, cunhado e Diogo Pereira, o perdido, de alcunha, que era irmão, razão por se darem todos por queixosos, por não serem chamados para aquelas honras funerárias.(3)

Fazer contratos de casamento numa comunidade fechada como a deles era coisa séria e grave. Não nos referimos ao problema de manter segredo da fé e ritos judaicos, o que levava geralmente a casamentos endogâmicos. Referimo-nos a questões de riqueza e promoção social. E, neste campo, o Prateiro teve alguns problemas, sobretudo com o casamento da filha mais velha, Leonor. Tentou casá-la com Pedro Álvares de Sá, morador em Rebordelo, um bom partido, ao que as testemunhas diziam. Porém, houve alguém que viu uma caixa de prata nas mãos de um tal João da Rocha, cristão-velho, escrivão, logo depreendendo que fora dada pela Leonor que com ele andaria de amores secretos. Pedro Álvares já não casou com ela, mas com outra sua irmã mais nova, Brites Pereira, o que, para o pai constituiu uma desonra e para ela uma infâmia tremenda.

Metida de amores com um cristão-novo andava também uma criada do Prateiro, cristã-velha, dos lados de Vale das Fontes. E a família do moço, avisou o amo, pedindo-lhe que expulsasse a criada, o que viria a acontecer, gerando, no entanto, alguma tensão entre as duas famílias.

Ainda a respeito de contratos de casamento, veja-se a seguinte declaração do Prateiro, que, em simultâneo, ataca os seus parentes de Mirandela, tidos por mais nobres:

— Provará que Francisco da Fonseca, filho de Isabel Antónia e Gaspar da Fonseca, de Mirandela, ficou seu inimigo porque estando em casa dele réu a aprender o ofício de prateiro, se ausentou para o reino de Castela e quando tornou, haverá 5 ou 6 anos, lhe pediu a ele réu uma filha para casar, o que ele não consentiu por ser o dito Francisco Fonseca moço extravagante que não tinha assento em terra alguma, tanto que voltou para Castela aonde vive.

Um grande sarilho em que o Prateiro se viu metido foi por cercear moeda, acusado que foi por Francisco António Mansilha, também prateiro, em Chacim. Defendeu-se, dizendo que o outro inventara aquilo para o fazer despejar da terra e ficar ele sozinho com o ofício.

Manuel Pereira da Mesquita foi preso pela inquisição de Coimbra, em janeiro de 1700, no âmbito de uma vasta operação de limpeza do sangue judeu na vila de Chacim, lançada em 1697, e que, nos anos seguintes, arrastou para as masmorras do santo ofício mais de uma centena de homens e mulheres.

Um dos argumentos usados para se defender, acabaria por se voltar contra ele. Com efeito, contou que, quando a sua mulher, Violante Lopes “entrou em perigo de morte, lhe mandou logo chamar o padre cura para o ofício da agonia”.

O abade de Chacim, Manuel Gouveia de Vasconcelos, era natural de Torre de Moncorvo e comissário da inquisição. Foi ele próprio (coisa rara) administrar-lhe os últimos sacramentos. E reparou que em nenhuma ocasião lhe ouviu chamar pelo nome de Jesus, nem o marido a isso a incentivou.

O mesmo disse o cura da igreja, padre Belchior de Morais, acrescentando que ela foi amortalhada em um lençol, como usam fazer os crentes da lei de Moisés e não em um fato do hábito de S. Francisco, como na vila costumavam os bons cristãos.

Manuel Pereira da Mesquita saiu condenado em cárcere e hábito perpétuo no auto da fé de 18.12.1701.

Notas:

1 - Inq. Coimbra, Pº 2714.

2 - Inq. Coimbra, pº 9710, de Manuel Pereira da Mesquita.

3 - Idem, pº 2773, de Gabriel Pereira.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães