Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - Diogo Rodrigues Henriques (Lisboa, 1636 – Lisboa, 1683)

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Quando foi preso pela inquisição, em 1672,(1) juntamente com o pai e o irmão Francisco, Diogo Henriques era já o administrador principal das empresas do grupo Mogadouro. Tinha 36 anos e mantinha-se solteiro, estando o seu casamento ajustado com uma filha de Gabriel Medina, seu primo direito, que em Livorno tinha uma das maiores casas comerciais. Trabalhando em rede familiar de negócios, eram proprietários da nau “Jerusalém” que regularmente assegurava as transações comerciais entre Lisboa, Livorno e Tunes, no Norte de África, onde tinham um forte entreposto comercial. Aliás, uma das acusações feitas aos Mogadouro era de serem passadores de cristãos-novos para Itália onde se faziam judeus. Impossível aqui descrever o inventário de seus bens, que ele fez ao longo de 13 sessões, o que bem revela a sua complexidade. Diremos tão só que na altura tinha barcos (alguns fretados por ele no estrangeiro)(2) carregando e descarregando mercadorias em portos da Índia, Brasil, Angola, Inglaterra, Holanda e Itália.

Acrescentamos que a Fazenda Real lhe devia quase 2 contos de réis respeitantes a 5 356 arrobas de biscoito (pão recozido) fornecido para os barcos da “carreira da Índia” e muitos mais contos dos géneros fornecidos para alimentação dos cavalos e dos militares estacionados em Trás-os-Montes dos anos de 1663/4 e 1666/8, para não falar de quantidade de rendas e assentos de Cascais, Setúbal, Aldeia Galega, Bragança e outras terras. Em garantia de tais pagamentos estavam-lhe consignadas as décimas de Setúbal e Almada, que montavam a 32 contos de réis.

Refira-se ainda que muita gente da nobreza de Portugal se encontrava “empenhada” na Casa Mogadouro, nomeadamente o marquês de Távora que ali devia 8 contos de réis! A própria inquisição dele se servia nas ligações com o tribunal de Goa e pagamento aos funcionários e ao próprio inquisidor/arcebispo das Índias. A título de exemplo, diremos que acabava de ser contratado o transporte de um grupo de frades dominicanos para apoio daquele tribunal e que importaria um custo de 300 mil réis. “Largas contas”, tinha também com o arcebispo de Lisboa que lhe estava devendo uns 800 mil réis e para oferecer ao mesmo tinha encomendado a feitura de um anel a um ourives estrangeiro que era o que trabalhava para a rainha.

A defesa de Diogo, como, aliás, a do pai e do irmão, começou por ser feita fora do tribunal, com a entrega de uma petição assinada pelos seus primos António e Diogo Rodrigues Marques e pelo seu irmão Pantaleão Rodrigues, na qual se identificavam e tentava desacreditar prováveis denunciantes seus “inimigos capitais”. Estes eram, naturalmente, homens e mulheres de ricas famílias de mercadores cristãos-novos que então foram presos. É que o golpe desferido pela inquisição não visou apenas os Mogadouro mas também outras empresas igualmente importantes: os Penso, Pestana, Chaves, Pessoa, Bravo, Lopes Franco, Gomes Henriques… e eles se relacionavam com Mogadouro, inclusivamente no que respeita a comportamentos religiosos, nomeadamente na Quinta do Conde de Salzedas, onde aquele tinha fábrica de preparação do tabaco.

Por seu turno, ele negava todas as acusações e confessava-se cristão exemplar, dizendo que, depois do “abominável caso de Odivelas”, quando ninguém queria aceitar o cargo de mordomo da confraria do Sacramento da mesma igreja, foi ele que se aprontou e a fez reerguer e para isso comprou muitos paramentos e fez várias obras, com dinheiro do seu bolso. Para além disso, era membro de várias confrarias de outras freguesias, como era o caso de N.ª Sr.ª da Conceição, N.ª Sr.ª das Mercês, S. Sacramento da Trindade, Sr.ª da Guia, Sr.ª da Atalaia, S. João Batista da igreja de S. Domingos, Sr.ª da Penha de França, S. Catarina do Monte Sinai e da confraria do convento de Santo Eloy.

E era “tanta a sua devoção ao SS. Sacramento” que nas festas do Corpo de Deus, mandava armar um altar na Rua dos Escudeiros e outro na Rua da Pichelaria, onde a própria procissão parava. E, na rua, na parede da casa de sua morada, mandou fazer um nicho, com a imagem do Senhor crucificado.

Imagine-se: na festa de S. Pedro Mártir, que era o patrono da inquisição, ele emprestava “muita prata” para bem decorarem a igreja de S. Domingos! E no último auto-de-fé, antes da sua prisão, emprestou ornatos de prata ao familiar do santo ofício Dr. João de Azevedo da Silveira”. Não imaginava que a mesma igreja seria o palco da sentença que o condenaria à morte.

Em prova de seu comportamento de cristão exemplar, apresentou testemunhas do maior crédito, a começar pelos arcebispos de Lisboa e Goa, pároco da sua freguesia, quantidade de padres e frades, gente da maior nobreza, muitos familiares do santo ofício e até solicitadores da inquisição.

Entretanto, as culpas de Diogo Mogadouro foram acrescentadas com a denúncia de um “crime” de maior gravidade: o de corromper o alcaide dos cárceres da inquisição, Agostinho Nunes. Vamos explicar:

Entre os muitos mercadores retalhistas que abasteciam as suas lojas nos armazéns Mogadouro, contava-se uma Juliana Pereira, que tinha relações muito estreitas com o alcaide. E os Mogadouro, servindo-se de ofertas para ela e para a família do alcaide, conseguiram abrir uma via de contacto com Juliana e Agostinho(3) a levar e trazer correspondência de Diogo Mogadouro para o primo António Marques, que pertencia a uma comissão de cristãos-novos que então estava negociando com a santa sé de Roma um perdão geral e a reforma dos estatutos da inquisição.

A piorar o seu caso aconteceu que seus irmãos, Francisco, Pantaleão e Beatriz, igualmente presos, confessaram que tinham judaizado e denunciaram também o Diogo. E este, que sempre se manteve negativo, inclusivamente no caso de Juliana e Agostinho, tomaria então consciência de que se arriscava a ser queimado e decidiu fazer-se doido, começando a gritar injúrias e blasfémias de todo o género, as mais hediondas, em termos de religiosidade cristã.

De nada adiantou. Os inquisidores juntaram depoimentos dos guardas e atestados médicos, dizendo que tudo era fingido, que ele estava “esperto e bem vivo”.

A luta diplomática em Roma(4) entre os representantes dos cristãos-novos e da inquisição, com a prisão dos Mogadouro e a elite da burguesia lisboeta ganhava intensidade e, em 1676, o papa suspendeu o funcionamento da inquisição, o que implicou também a paragem do processo de Diogo Mogadouro. Seria retomado em 1681, acabando condenado à pena máxima. Foi queimado na fogueira do auto da fé de 6.8.1683.

O processo de Diogo Rodrigues Henriques foi considerado por alguns como um ato de vingança dos inquisidores que estavam “irritados contra a casa de António Rodrigues Mogadouro que foi a principal parte no negócio do Recurso” estranhando-se que os inquisidores dissessem “abertamente que a dita casa era a sinagoga de todo o reino”.(5)

 

Notas:

1 - Inq. Lisboa, pº 11262, de Diogo Rodrigues Henriques.

2 - Entre os barcos fretados pelos Mogadouro podemos citar uma nau holandesa denominada “Tigre Dourado”, de que era mestre Agostinho Valente e o navio inglês “Rainha D. Catarina” dirigido pelo piloto João Martins. Dos portugueses, para além da nau “Jerusalém”, de que eram proprietários, podemos citar a nau “Loreto” e o patacho “N.ª Sr.ª dos Remédios”. Para além da nau “Jerusalém” a nau “Loreto” e uma “charrua” dirigida pelo mestre Domingos Pires Carvalho, que estava carregando na Baía, eram propriedade dos Mogadouro.

3 - Inq. Lisboa, pº 5416, de Agostinho Nunes; pº 7668, de Juliana Pereira.

4 - Um documento que testemunha a participação dos Mogadouro nessa “luta” encontra-se no ANTT, Armário Jesuítico, segunda caixa, n.º 87 e tem o título: — Reparos que fez um sujeito bem-intencionado por ocasião do auto-da-fé que se celebrou em Lisboa, em 10 de maio de 1682. O 19.º desses Reparos diz o seguinte: — Em que o Sumo Pontífice deixasse julgar as casas e pessoas tocantes aos procuradores deste negócio pelos inquisidores novamente restituídos; e como estes estavam irritados contra a casa de António Rodrigues Mogadouro que foi a principal parte no negócio do Recurso, por todos os caminhos parece a quiseram destruir, infamando dois filhos de profitentes, aceitando-lhe confissões indignas e sugeridas, para convencer o pai e irmão mais velho, retendo estes na prisão sem saber-se com que direito depois de 10 anos e usando para os fazer confessar, ou desesperar, de horrendas troças, dolos e sugestões e ainda chegando a insinuar deles coisas indignas, como que estão ou hão-de ser profitentes e dizendo abertamente que a dita casa era a sinagoga de todo o reino. E que se ouça isto da boca dos mesmos que hão-de julgar as vidas, as honras e as fazendas desta casa?

5 - Idem.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães