“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Faltam familiares para as levas dos presos.

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Os familiares do santo ofício serão pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade reconhecida. Terão fazenda de que possam viver abastadamente.  Assim estatuía o Regimento que lhes impunha a obrigação de cumprir escrupulosamente as ordens dos inquisidores ou dos comissários da sua região. De qualquer caso conhecido, atinente à defesa da fé, eles deveriam avisar o comissário ou escrever para a inquisição. Os familiares tinham direito a usar hábito e colar próprio, mas apenas o usariam no dia de S. Pedro Mártir, quando participarem nos autos-da-fé e quando “forem prender alguma pessoa ou a trouxerem presa para os cárceres”. Ser familiar da inquisição era coisa de muito prestígio e procurada por gente da maior nobreza, condes e duques, incluídos. Aliás, eles deviam “viver à lei da nobreza” e as próprias Cortes chegariam a ser dominadas por familiares da inquisição, como foi o caso das que reuniram em Lisboa em 1668, para retirar o trono a D. Afonso VI e entregá-lo a seu irmão D. Pedro II. Na prática e, falando uma linguagem menos técnica, diremos que os familiares da inquisição eram uma espécie de criados a quem os comissários mandavam fazer as prisões e conduzir os presos para as cadeias da inquisição. E eram também os “polícias”, que tinham o dever de espreitar os comportamentos das pessoas e denunciar os crimes contra a fé. De qualquer modo, podemos dizer que os familiares constituíam o braço civil, ou, no dizer de Borges Coelho, “a milícia da inquisição”. Por outro lado, tinham muitos privilégios e garantias, como o de não pagarem impostos nem multas e nem sequer serem julgados em ações criminais pelos juízes das terras mas pelos inquisidores, salvo em crimes de lesa-majestade e outros bem especificados.Para ser familiar da inquisição era necessário organizar um delicado processo, que começava pelo requerimento do pretendente que logo tinha de fazer um depósito monetário de 12 000 réis. De seguida os inquisidores mandavam a um ou mais comissários da região fazer investigações particulares sobre a limpeza de sangue, a categoria social, os recursos económicos e financeiros e as capacidades intelectuais e de carácter do candidato. Caso as informações fossem positivas, ordenava-se uma investigação judicial, nomeando-se um comissário que escolheria um escrivão e ambos iriam ouvir cerca de 10 testemunhas que melhor conheciam o candidato, os seus pais, os avós paternos e maternos. Por vezes, o comissário tinha de se deslocar a várias terras e ouvir dezenas de testemunhas, de acordo com o nascimento e morada do candidato e de cada um dos seus ascendentes. Obviamente que tudo isso custava dinheiro, muito dinheiro, que a “jorna” do comissário e do escrivão era umas 4 vezes maior que a de um trabalhador normal. Por vezes as investigações prolongavam-se por anos e dezenas de anos, com recursos e mais diligências e mais despesas do pretendente.  Outras vezes terminavam logo, bastando uma ou duas testemunhas dizer que havia rumores de um dos ascendentes ser tido por hebreu, de raça. Requerer a admissão como familiar e não ser aceite era uma infâmia, era como lançar lama não apenas sobre o candidato, mas sobre toda a sua família, pois ficava a ser tida como infetada pelo sangue judeu. Por vezes uma família da nobreza estendia-se por muitas terras e a fama judaica ficava cobrindo a todos. Olhemos agora a inserção dos Familiares da inquisição na paisagem social da cidade de Bragança, na época que estamos estudando, ou seja, nas primeiras décadas do século XVIII. Cidade extremamente militarizada, logicamente que a inquisição gostava sobremodo de recrutar os seus familiares entre as chefias militares. Aliás, os chefes militares eram, em geral, homens da nobreza. De certo modo, pode até afirmar-se que a Nobreza de uma família se media pela patente militar dos seus membros e pelos familiares da inquisição que ostentava como ramalhete. Naqueles anos, de 1700 a 1714, desenrolou-se a chamada Guerra da Sucessão de Espanha, com Portugal a alinhar ao lado da Inglaterra, Áustria, Holanda, enquanto a Espanha era apoiada pela França. Em Trás-os-Montes aconteceram várias incursões das tropas castelhanas, com a tomada da praça de Miranda do Douro e o saque nas localidades de entre Douro e Sabor, particularmente a Torre de Moncorvo.  Saqueadas foram também muitas aldeias dos termos de Vinhais, Chaves e Bragança, chegando os invasores às proximidades desta última cidade.  Obviamente que, estando os chefes militares que eram familiares da inquisição empenhados na guerra, sentia-se em Bragança uma enorme falta de familiares para espiar e prender os judeus e conduzir as levas de prisioneiros para as cadeias de Coimbra. E logo naqueles anos em que se assistiu a uma grande vaga de prisões! E essa falta não era apenas em Bragança, mas por todo o Nordeste Trasmontano, de Vinhais a Chacim, Vimioso, Mirandela, Vila Flor, Miranda do Douro… Não faltam documentos de prova, como o requerimento de Domingos Pires Malheiro, dizendo: - Ele suplicante deseja servir o santo ofício na ocupação de familiar porque na dita cidade e seus arredores há muito poucos familiares e os que há estão impedidos com alguns postos de guerra.  Com vista a colmatar essa falta, os inquisidores de Coimbra escreviam ao comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, abade da igreja de Santa Maria, pedindo-lhe que indicasse candidatos a familiares. Veja-se uma dessas cartas, datada de 16.2.1707: - Suposta a falta de familiares que há nessa cidade e arredores para efeito das diligências do santo ofício se fazerem como convém, nomeie V. Mercê alguns sujeitos capazes de servirem o santo ofício na ocupação de familiares e que possam vir com os presos quando houver ocasião e para isso forem mandados; e para este ministério fica escuso o familiar Francisco Perestrelo de Morais. Assim o tenha V. M. entendido e nos avise acerca dos sujeitos capazes a familiares, se os houver.Antes de vermos a lista enviada pelo comissário Bartolomeu Gomes da Cruz, analisemos aquela referência ao familiar Francisco Perestrelo de Morais. Este é exemplo perfeito de um homem da nobreza que se faz familiar da inquisição, apenas por uma questão de prestígio. Importante era ostentar o hábito de familiar e gozar das regalias inerentes ao cargo. Fazer prisões, conduzir levas de presos a Coimbra era coisa que em Bragança só trazia problemas. Por isso procurou e conseguiu esquivar-se a cumprir essas tarefas do seu ofício. Aliás, na sua família abundaram os homens da inquisição. Para além de seu irmão, Miguel Ferreira Perestrelo, que era comissário, e dele próprio, contaram-se mais 5 familiares, a saber: Estêvão Perestrelo, seu avô paterno. António Mendes Dantas, marido de sua tia paterna, Maria Perestrelo, juiz dos órfãos em Bragança, justificando-se a sua candidatura por falecimento do sogro, “do qual está vago o lugar de familiar em Bragança”. Vasco Pegado Borralho, casado com sua tia materna, Maria de Morais, morador em Alfândega da Fé, onde tinha o cargo de capitão-mor. Baltasar Morais Sarmento, marido de sua tia materna, Francisca Ozores. António Pimentel de Morais, seu cunhado, marido de sua irmã Isabel Ferreira da Cunha, aliás, Mónica da Cunha Ozores Albuquerque, morador na vila de Algoso, filho do alcaide-mor da mesma vila e sobrinho do inquisidor Manuel Pimentel de Sousa. Era, na verdade, um grande ramalhete de familiares da inquisição que a família Perestrelo apresentava. Mas em Bragança havia outras famílias igualmente nobres e que apresentavam ramalhetes semelhantes de familiares, que também procuravam esquivar-se ao cumprimento das tarefas menos agradáveis do ofício que deviam desempenhar. Acrescentando esta realidade ao estado de guerra, como atrás se disse, fica mais clara a necessidade que havia de familiares do santo ofício. 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães