Falando de …Natália Correia

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A sua voz tonitroante deixava marcas por onde passava. Era inconfundível. Lembro-me de a ter ouvido em alta discussão com Dórdio Guimarães, em restaurante, por onde acidentalmente passei.

Marcou uma época. Partiu com um manto de adjectivos. Nem sempre unânime na apreciação dos seus críticos, foi controversa a vida desta mulher que nos deixou há vinte e cinco anos. Votada a algum esquecimento, como é timbre daqueles que em vida foram grandes, importa que lembremos a sua existência.

De seu nome completo, Natália de Oliveira Correia, açoriano, da Ilha de São Miguel, freguesia da Fajã de Baixo. Nasceu a 13 de Setembro de 1923. Figura eclética da intelectualidade dos seus tempos, não deixou indiferente quem com ela lidou, ou que dela ouviu falar. Nascida para o conhecimento, conjugou saberes que vão da poesia, ficção, conto, teatro, ensaio, jornalismo à edição.

Profundamente preocupada com tudo o que a cerca, mantém relações muito próximas com António Sérgio, onde se desdobra na área do cooperativismo. Amiga de Sá Carneiro e de Ramalho Eanes, foi deputada independente à Assembleia da República pelo PSD e depois, também, como independente, pelo PRD. Deputada à Assembleia, convidada para introduzir o discurso cultural, ficou famosa a sua intervenção, quando em 1982, discutindo-se a lei do aborto, em forma de poesia responde ao deputado do CDS, João Morgado que afirmava que o acto sexual era para fazer filhos:

“O acto sexual é para fazer filhos”-disse ele/Já que o coito-diz Morgado-/Tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menino ou menina;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca-truca/Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou-parca ração!-/uma vez. E se a função/faz o órgão-diz o ditado-/consumada essa excepção/ficou capado o Morgado.

               Segundo afirmava, casada as vezes que lhe apeteceu, teve ao longo da sua existência quatro maridos, sendo o grande amor da sua vida, Alfredo Lage Machado com quem casou em 1950. O Senhor Machado, como lhe chamavam, cavalheiro distinto, será o marido companheiro – pai-irmão de Natália. Viverão juntos a partir de 1953, no quinto andar do número cinquenta e dois da Rua Rodrigues Sampaio, por cima da Pastelaria Smarta, que ainda hoje existe. O casamento será interrompido com a morte do marido em 29 de Janeiro de 1989. Em 1990, casa com Dórdio Guimarães, escritor e cineasta, seu “esposo-irmão”, confessando ser um amor casto. A propósito da sua relação com Natália, dirá Dórdio Guimarães que aos catorze anos sendo, portanto, um adolescente, a viu pela primeira vez, tendo ficado terrivelmente impressionado. Será Maria Teresa Horta quem apresentará, mais tarde, Dórdio a Natália Correia.

Apesar dos vários casamentos, nunca lhe apeteceu ter filhos, porque foi muito cedo prevenida pela mãe, que era malthusiana, sobre os efeitos nefastos do momento populacional que são hoje um pesadelo para a sociedade. Nesta linha, demonstrativa de alguma intolerância para o infantilismo existente em grande parte dos adultos, condescendentes em certos comportamentos, publica em 1974 um dos seus livros mais polémicos, intitulado Uma Estátua para Herodes.

Na sua casa, na Rua Rodrigues Sampaio, em pleno salazarismo, enfrentando o regime de ditadura em Portugal, muitas foram as individualidades que por lá passaram. Mário Soares e a mulher, Maria Barroso, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, foram alguns de uma plêiade de intelectuais que estabeleceram laços de amizade e culturais com Natália Por lá também passaram vultos de renome internacional, como Henry Miller, Ionesco, Claude Roi e Henri Michaux. Avessa a regimes ditatoriais, pugnando pela liberdade, lutando contra a censura vê textos seus publicados em jornais e em livros serem proibidos. O seu percurso político e de defesa da liberdade inicia-se muito cedo, participando no MUD – Movimento de Unidade Democrática. Participará activamente, ao lado de Mário Soares, José Augusto França e outros na campanha eleitoral de Norton de Matos e de Humberto Delgado.

Com um primeiro livro publicado em 1945, Grandes Aventuras de um Pequeno Herói, depois de uma vasta produção literária, onde não falta a participação em tertúlias de poesia, onde declama primorosamente, Natália é julgada em tribunal devido à publicação de Antologia da Poesia Erótica e Satírica, sendo condenada em 1970 a três anos de pena suspensa.

Em luta constante contra a censura, a peça de teatro de Sartre, publicada em 1944, Huis Clos, proibida em Portugal, será representada em casa de Natália Correia que fizera a tradução, a montagem, interpretando um dos papéis. Carlos Wallenstein encarregar-se-á da encenação. Várias foram as individualidades que assistiram à representação, como Almada Negreiros, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, Augusto de Figueiredo, Isabel Meirelles, Isabel da Nóbrega, João Gaspar Simões, Mariana Tânger e Martins Correia.

Em 1967, Lisboa recebe no Teatro Capitólio, no Parque Mayer, o poeta russo Ievetuchenko, trazido pela Dom Quixote, dirigida por Snu Abecassis, amiga de Natália, que mais tarde se enamorará de Francisco Sá Carneiro, tendo Natália oferecido uma recepção ao poeta, na sua residência, que no recital de poesia a interpretará em russo, única ocasião para ouvirem a língua do poeta. Natália exultará pelo momento.

A casa da Rua Rodrigues Sampaio é o salão literário e de convívio da época. O fim do ano será sempre motivo para grande festa com as salas cheias. Alfredo Machado, responsável pelo Hotel Império, é um óptimo organizador destes acontecimentos. Com uma actividade social intensa, não descura a componente intelectual, publicando entre outros, em 1968, o livro de poesia Mátria, tendo David Mourão-Ferreira considerado Natália Correia, um dos casos mais sérios da poesia portuguesa de todos os tempos. Com uma vida plena de actividade, ainda tem tempo para abrir com o marido, Alfredo Machado, e a sua amiga açoriana Maria Mendonça, uma loja na Rua do Salitre, que se dedica à venda de móveis e antiguidades, a que deram o nome de Rodapé.

Algures lemos que a vida veio ter com Natália. Nascida no oceano profundo, vem Natália para Lisboa conduzida pela mãe, Maria José Oliveira, mulher superior, professora de instrução primária, aos livros dada. Do pai vê-lo-á partir para o Brasil, onde tentou angariar contributos que a ilha açoriana não lhe proporcionava. Avessa ao rigor, obstinada, recusando escrever no caderno diário, será expulsa do Liceu Filipa para voltar, depois, à Escola Machado de Castro. Precisava de mundo. De conhecer pessoas, conviver, ler. Ser feliz. Talvez o Colégio Lusitânia, aberto pela mãe, na Rua Morais Soares lhe tenha proporcionado o que desejava: a faculdade de dizer não e de traçar o seu próprio caminho.

Muito jovem desperta para a política. Conhece gente que a faz crescer: Martins Correia, Tomaz Ribeiro e Mário Soares. Casa muito jovem, sendo jornalista do Rádio Clube Português em 1944, ao mesmo tempo que publica poesia no jornal em que colabora. Livros seus sucedem-se: Aconteceu no Bairro e Rio de Nuvens. Colabora no jornal O Sol até ao seu encerramento pela censura em 1949. Uma viagem em 1950 aos Estados Unidos da América suscitará a escrita de um livro de viagens que intitulará Descobri que Era Europeia, a que acrescentará impressões de mais duas viagens ao mesmo país em 1978 e 1983, o que reflectirá algum descontentamento e decepção pelo visto e vivido.

Mulher de vida plena, rodeado de gente que a admira, de amigos mais de quantos e de detractores que não lhe escasseiam. Original, de invulgar desassombro, de grande lucidez e abertura de espírito, provocadora, por vezes, ela era o centro da atenção, independentemente do lugar que ocupasse. A alegria de viver distinguia-a de outros elementos femininos. A boquilha que utilizou ao longo da sua vida, possuindo várias de diferentes formatos e feitios, era um acessório de que não prescindia, permitindo-lhe confirmar gestos e poses que as suas mãos tão bem sabiam representar. As écharpes, a par das boquilhas, transmitiam-lhe um ar imperial que a sua voz declamatória confirmava. Se durante muito tempo foi considerada uma das mulheres mais belas de Lisboa, das mais atraentes e das mais disputadas pelos olhares masculinos, confessava quase nunca ter líbido, mesmo em nova, o sexo nunca representou grande coisa para si, tendo gostado sempre de homens mais velhos. Era muito pudica no que dizia respeito à sua intimidade, não se despindo ante os médicos que consultava e não vestia fato de banho quando na juventude ia à praia. “A massificação do espectáculo praiante enoja-a”.

A beleza e a elegância perdidas não pareciam incomodá-la. Uma vez por semana a cabeleireira ia arranjá-la a casa. Não comprava roupas e os vestidos eram feitos pela porteira.

Com um mundo que a cerca cada vez mais a agigantar-se, em Dezembro de 1971, abre-se uma nova etapa na vida da poeta. Não gostava que lhe chamassem poetisa. Isabel Meirelles e Natália Correia constituem a sociedade Correia e Meirelles Lda que sob a gerência de Alfredo Machado darão origem ao Botequim, no Largo da Graça, edificado a partir de uma antiga carvoaria com tulhas de petróleo e de carvão. Acerca do Botequim, Fernando Dacosta, íntimo de Natália Correia, escreverá em  O Botequim da Liberdade, publicado pela Casa das Letras em 2013, abundante informação sobre aquele espaço que dominou a noite lisboeta durante vinte anos.

O bar ocupou uma posição estratégica na sociedade lisboeta. É cada vez maior o número de frequentadores em busca de um convívio que não encontravam noutro lado. Políticos, intelectuais, militares e, naturalmente, Natália, discutiam, polemizava, concordavam e discordavam. Pretexto para celebrações que passavam por lançamento de livros, saraus de poesia, acontecimentos científicos e humanísticos  merecem o aplauso , o convite e o apoio daqueles que tornavam o Botequim um lugar de magia, aprazível e feérico. Uma festa onde se construíam e desfaziam utopias, de convívios que perduravam, de amizades, de estratégias, de segredos, de governos, de conjuras e de promessas que se procuravam construir. Natália na sua plenitude, irreverente, afectiva e independente, improvisando, discursando, declamando e cantando chamava a si as honras da casa. Com o 25 de Abril, o Botequim tornou-se uma referência e um baluarte na luta pela liberdade. São muitos os militares que o frequentam. Natália avessa a totalitarismos enfrenta com determinação os ideais democráticos, opondo-se tenazmente à esquerdização em curso. Num período em que Camões e Pessoa são apodados de imperialistas, em assembleia realizada nas Belas Artes e na Sociedade Portuguesa de Autores, Natália Correia é escarnecida. Ao invés, em 1975, quando se desloca a São Miguel é expulsa de um restaurante, juntamente com uma amiga, por ser comunista.

Natália Correia, um ser visceralmente verbal, não deixa de anotar as suas impressões acerca das sinuosidades que marcam o período da revolução de Abril. Acontecimentos do 25 de Abril de 1974 a 20 de Dezembro de 1975 passam à posteridade através do livro publicado por Natália, a que deu o nome de Não Percas a Rosa, recordando a rosa que uma mulher idosa lhe ofereceu quando descia a escada do convento de Tomar.

A propósito do do acto de escrita em Natália Correia, vale a pena transcrever o que anotou Ana Paula Costa em Fotobiografia, editada pela Dom Quixote em 2005, página 165

Escrevo todos os dias e à mão. Não permito que nada me escape da escrita, porque o corpo e a palavra estão unidos. Tudo começou quando a palavra se fez corpo. Deito-me tarde porque o dia divide e a noite une. O poeta tem que banhar-se na lunaridade da festa nocturna. De contrário é um tecnocrata do verso que só conhece metade da vida.

Com uma actividade cívica invulgar, Natália Correia não descura o seu estro literário. Confidenciou que precisava de uma outra vida mais para escrever o tanto que lhe falta, embora ainda tenha tido tempo para criar o Hino dos Açores. Da muita poesia que escreve, é-lhe atribuído o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores 1990, com a publicação de Sonetos Românticos. Responsável por algumas editoras, como Arcádia e Estúdios Cor, Natália Correia desmultiplica-se. Muitas são as condecorações que lhe são atribuídas, quer de carácter cultural, quer cívico. O reconhecimento para quem não se satisfazia com o espectáculo do mundo, mas nele participando, enriquecendo-o.

E nós que procuramos na palavra a desenvoltura que os nossos maiores nos legaram, vamo-nos lembrando daqueles que tiveram voz alta para se afirmarem num Portugal que não pode abdicar dos seus valores, descobrindo novos horizontes como se o mundo fosse uma porta apta para se abrir aos nossos olhos buscando sempre um tempo novo.

Natália Correia, polémica, sagaz, irreverente, sábia e independente e interventiva deu-nos a mão, mostrando até onde o nosso querer pode chegar.

Partiu há vinte e cinco anos. E muito se passou nas nossas vidas… Hoje recordamo-la. Um dever da escrita.

                                                                                                                           João Cabrita   

                                                                           Não foi adoptado o Novo Acordo Ortográfico 

 

 

João Cabrita