A democracia é chata

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Mas é a consciência do mundo. Talvez por isso, nos momentos em que se reorganiza entra-se num período de catálise onde apenas reina a expectativa do dia seguinte, e quem escreve fica sem factos. A seguir às legislativas, optou-se por abandonar a tradicional futurologia do elenco governativo para traçar cenários sobre o modo como se iria constituir governo para os próximos quatro anos. Ao todo, creio que foram criadas oito possibilidades sendo que nenhuma delas confere à governação a estabilidade dada pela anterior “gerigonça”. Certo, para alguns comentadores, é que nenhum dos partidos estava interessado em reativar o anterior modelo, pelo que teriam respirado de alívio quando se aperceberam de que já nada havia a fazer. O irrealista caderno de encargos apresentado pelo Bloco, a irredutibilidade do PS e o fechamento do PCP nas suas fileiras que esmorecem, geraram apenas um cenário de duvidosa continuidade onde nem as suposições mais sui generis conseguiram alcançar o âmago da questão.

Mas, independentemente dos cenários, o certo é que só se chegou a eles por vias da democracia que tem tanto de deslumbrante como de temeroso num tempo de incertezas e conflitos que, deixando de ser latentes passaram a emergir de forma quase espontânea aos nossos olhos. Bastará pensar no que está a acontecer na vizinha Catalunha, na tão próxima Turquia ou no não tão longínquo Reino Unido para entender que há sinais claros de que se vive um tempo em que nada se pode dar como adquirido em termos geopolíticos e de estabilidade social. É que a democracia tem destas coisas… Nós por cá, vamos fazendo mudançazinhas porque ou somos de brandos costumes ou não estamos para grandes atos de heroísmo – é cansativo e nunca se sabe como terminam.

Talvez seja por isso que a democracia é mesmo chata. Não é que seja chata, mais me parece que é matéria sujeita às leis da Física: ou se expande ou se retrai. Ou seja, a democracia é um processo e, como tal dinâmico; não pode viver num estado que permita o estaticismo, terá de ser um fluir contínuo em equilíbrio no qual o movimento terá de ser uniforme e retilíneo sob pena das forças atuantes se anularem e este corpo permanecer em repouso. Por mais que se queira, o regime democrático exige uma constante interpelação dos cidadãos para se manter dentro dos valores que o definem, pelo que o esmorecer ou o afastar dos seus ideais conduz a distorções que resultam nos mais variados acontecimentos disruptivos, incluindo a emergência de ideologias contrárias a esta.

Num momento em que os extremismos fazem a sua assunção dentro do sistema político português e os fundadores da democracia se vão extinguindo, é de questionar se os paladinos destes valores souberam compreender verdadeiramente o que instituíram ou, pelo contrário, com o passar do tempo, cederam à tentação do conformismo e descuraram a necessidade de fazer chegar a todos os ventos da mudança que começaram a soprar num tempo em que se acreditava que o fosso entre ricos e pobres iria desaparecer e a melhoria das condições de vida iria chegar aos lugares mais recônditos deste país. Acima de tudo, a democracia é um sistema de tal forma frágil que facilmente cede lugar à oligarquia que, a curto prazo, pode deslumbrar o povo, mas a médio prazo ou se torna anarquia ou se converte em tirania e ambas oprimem.

Como nada é garantido e o que hoje é, amanhã já não é, ninguém deve querer hipotecar a sua liberdade apenas porque agora até a procrastinação na defesa de direitos considerados adquiridos é permitida. Ora se a democracia é chata por ser exigente, continuemos a abrir espaço a outras formas de governação e saberemos o que é ser escravos na própria terra.  

 

Nota: O título foi censurado à nascença por uma democrata convicta que se pôs a espreitar o ecrã do computador. Apelo, por isso, a que o leitor seja compreensivo e permita o uso da liberdade de expressão.

Raúl Gomes