Bragança : A Nação Judaica em Movimento - 6 Manuel de Sousa Pereira advogado em Beja

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Já em outro texto falamos de Jerónimo Pimentel e Ventura Nunes um casal de fabricantes de seda que, na década de 1660, andou acertando contas com o santo ofício. (1) O casal teve 3 filhos e nenhum deles seguiu a profissão do pai. Um, João Pimentel, foi mercador e os outros dois, Manuel Fernandes Pimentel e Martinho Rodrigues Pereira, fizeram-se ourives. Ao findar da centúria de 600, os três eram já casados e moravam em Faro, “reino do Algarve”, onde os precedera o tio Sebastião Pimentel, também ourives do ouro. (2) Antes de 1712, vamos encontrá-los a morar no Alentejo, em Beja, com as respetivas proles. Situando-nos naquela data, vamos visitar João Pimentel e Martinho Pereira. Em Beja, o mercador João Pimentel dedicava-se também à lavoura, explorando a quinta do Arrebentão (hoje Monte do Arrebentão), e isso é um claro exemplo de como os “homens da nação” facilmente se adaptavam a novas profissões e atividades. Não sabemos se a casa de morada era na cidade ou na Quinta. Encontrava-se então viúvo de Violante de Sousa, que lhe dera dois filhos, nascidos ainda em Bragança. Vamos apresentá-los. Jerónimo Pimentel se chamou um deles. Estudava então na universidade de Coimbra, formando- -se em medicina. Casou depois com sua prima, Ventura Nunes Henriques, filha de seu tio Martinho Rodrigues. O outro tomou o nome de Luís da Fonseca Pimentel e era mercador. Casou com D. Catarina Maria Henriques, de uma importante família de Lisboa, irmã do Dr. Miguel Lopes de Leão. Pai e filhos haveriam de ver-se a contas com a inquisição de Évora. (3) Em Beja, a casa de Martinho Rodrigues Pereira situava-se na Rua de Aljustrel. Fora casado em primeiras núpcias com Isabel Henriques de Sousa, natural de Lamego, provavelmente irmã de um Simão Vaz Guerreiro, nascido em S. João da Pesqueira e que terá ido para Bragança, ocupar o rendoso cargo de feitor da alfândega da cidade. Também o feitor Simão Guerreiro foi prisioneiro da inquisição, sentenciado em cárcere, hábito e sequestro de bens no auto de 14.6.1671. E também ele terá ido para o Algarve. (4) Antes de 1708, Martinho ficaria viúvo, casando novamente com D. Grácia Henriques, natural de Lisboa, irmã do Dr. Miguel de Leão (5) e da mulher de seu sobrinho Luís da Fonseca, como atrás se disse. Na sequência das várias prisões efetuadas pela inquisição de Évora entre os seus filhos e sobrinhos, também Martinho Pereira sofreu os horrores das celas daquele tribunal durante 3 anos (6) posto o que fugiu para Amesterdão com a mulher e filhos mais novos. Para além da citada Ventura Nunes Henriques, importa falar de um dos filhos de Martinho Pereira e Isabel de Sousa, nascido e batizado na cidade de Faro, por 1699, sendo padrinhos o tio Simão Vaz Guerreiro e a avó materna, Ana Gomes Henriques. Chamou-se Manuel de Sousa Pereira e, por 1711, “assistia” em Loulé, em casa da avó e madrinha que o doutrinou na lei de Moisés. Dois anos depois foi para Coimbra estudar, formando-se em leis. Em 1719, abriu em Beja o escritório de advogado. Em Outubro-Novembro de 1720, a inquisição prendeu em Beja muitas dezenas de pessoas. Médicos, advogados, ourives, boticários, mercadores… a fina flor da sociedade foi arrastada para as cadeias da inquisição de Évora, acusados de se ter juntado na casa de João Álvares de Castro, para fazer cerimónias judaicas. Entre os denunciados, contou-se o Dr. Manuel de Sousa Pereira que foi preso em 22.11.1720. Confrontado com aquela acusação, respondeu: - Tudo o referido é falso: só é verdade haver-se feito uma Academia na cidade de Beja, em casa de João Álvares de Castro, lavrador, em que estiveram presentes todas as pessoas da dita cidade mais qualificadas, em que ele depôs Camões; e um filho do dito João Álvares de Castro, chamado Henrique Lopes Rosa presidiu à dita Academia; e nela não se falou na lei de Moisés.(7) Os inquisidores ouviram, mas não terão acreditado, habituados que estavam a ouvir réus que começavam por negar e depois confessavam tudo e mais alguma coisa. O processo continuou e, tempos depois, fez a seguinte confissão: - Disse que, em Fevereiro de 1720, em Beja, tendo ele notícia de que em casa de João Álvares de Castro (…) se fazia um ajuntamento em que se havia de praticar sobre a lei de Moisés se resolveu a ir à dita casa (…) que estava ornada com cadeiras, tamboretes e bancos à roda da mesma casa (sala) e alguns bancos no meio dela e nela viu estar um bufete com 4 ou 6 velas acesas e que na casa se achavam as pessoas seguintes… (8) Começou então a identificar os participantes naquela cerimónia judaica, num total de 57! Face àquelas declarações assim contraditórias, passou a ser acusado de falsário, uma acusação bem mais grave e cuja sentença final não podia ser outra senão a de ser relaxado à justiça secular, como o procurador pedia. No entanto, assim não entenderam os inquisidores, que ditaram uma sentença algo extraordinária: - Pelos indícios que houve de ser falso o dito ajuntamento de que haviam testemunhado João Manuel de Andrade e Francisco de Sá Mesquita se presumisse também que o réu confessava falsamente em que depôs do dito ajuntamento, e só o fizera por se ver convencido em o judaísmo pelos ditos jejuns e querer satisfazer a tudo o que o acusava a justiça. (9) Significa isto que os inquisidores consideravam falsas as declarações sobre tal ajuntamento judaico, mas não consideravam falsário o declarante Manuel Pereira; antes entendiam que fizera declarações falsas para, assim, resolver o seu caso. Os inquisidores retiraram a acusação de falsário, mas condenaram Manuel em sequestro de bens, cárcere e hábito perpétuo, por outras práticas de judaísmo, inclusivamente por ter feito jejuns judaicos dentro do próprio cárcere, 4 deles vigiados e testemunhados. Os depoimentos das pessoas que o vigiaram apresentam-nos um “judeu” encurralado na cela, mas irradiando serenidade e humanismo, um Trasmontano que prepara uma açorda alentejana para cear em honra do Deus que fez o Céu e a Terra. Vejam um pouco do que contou o familiar do santo ofício António Gomes Prego, que esteve espreitando, na tarde do dia 10.2.1721, testemunhando o 3º jejum judaico: - Levaram-lhe azeitonas que tudo lavou muito bem (…) tirou da dita canastra dois pães e 2 ovos cozidos e metade de uma cebola, a qual migou muito bem, em uma tigela e lhe deitou 3 vezes água; e esbugalhou as cascas dos ovos e os pôs junto com a cebola, muito bem escorrida (…) e depois se pôs a passear, em forma que, quando chegava à grade, metia as mãos abertas com as palmas para cima e desta sorte vinha no passeio para o fundo da casa; e voltando para a porta, logo abaixava as mãos; porém, tanto que chegava à grade as punha na forma sobredita; e desta sorte andou até que lhe levaram o lume e lhe deram as boas noites (…) e ultimamente se arrimou à grade por espaço de quarto e meio de hora, com os olhos e rosto para o ar e com os braços metidos pela grade e as mãos abertas, as palmas para cima, em que esteve até às 7 horas que se retirou e se pôs a comer os ovos misturados com a cebola e o pão, em que deitou uma colher de açúcar, azeite, vinagre e pimenta. E não comeu cousa alguma da dita ração de carneiro; nem até àquela hora tinha comido ou bebido cousa alguma, nem feito sinal de cristão. (10) Em próximos textos continuaremos a acompanhar os movimentos da “nação de Bragança” pelo Algarve e dali para Beja.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães