Um Natal em Lagarelhos

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Ter, 20/12/2005 - 14:59


À medida que a camioneta do Sr. Jerónimo arfava na subida em direcção ao Barracão, o meu coração batia mais depressa ante a iminência da chegada.

Regressar a Lagarelhos era sempre o despejar do bolso de tristeza e, reencontrar o alvoroço renovado da alegria. Ao apear-me acenei ao Sr. Chico, o sempre sorridente cobrador, enquanto agarrava a maleta e, sem reparar em ninguém, dirigi-me para a aldeia. O senceno amorrinhava a luz no caminho, ao calcar a lama pressentia os ouriços esventrados, tudo me era familiar, os castanheiros gigantes, as primeiras casas, os sons e latidos. Num repente tinha chegado, a casa, à minha casa. Lépido, subi as escadas de pedra, abri a porta, sentada, a aquecer-se em frente a uma enorme fogueira, a minha avó. Sozinha. Abracei-a, as lágrimas confundiram-se. O ano tinha sido mau para nós. Viúva de vivo, sem filhos junto a ela, carpia mágoas e saudades, enquanto eu teimava em abraçar sonhos em vez de defrontar a realidade áspera de um viver a impedir-me de ter férias como antes. Julgava que já não vinhas, dizia, enquanto me beijava repetidamente. Consoamos aqui os dois – disse-me com a pureza e a dureza de quem estava habituada a decidir. O clarão do lume batia-lhe em cheio na cara, realçando os olhos enormes e habituados a chorarem. Enquanto ela “fazia” o comer, fui à sala, tendo ficado deliciado por receber os deliciosos e delicados aromas das maçãs “porfírias” que se amontoavam num canto e das uvas transformadas em passas que teimavam em manterem-se nos cachos dependurados no tecto. Aqueles cheiros faziam parte da minha infância feliz. A ceia mereceu toalha branca, colheres, garfos e facas com cabos envoltos em madeira negra, copos e caneca de vidro, tudo aquilo só usado na Páscoa e no dia da festa em honra do chaveiro do Céu. Principiámos por comer polvo frito, depois bacalhau cozido com batatas e couves bem azeitadas dentro de um falar de tempos idos, da sua mãe exposta da roda, vinda da Assoreira, cujo descobrimento motivou um acto misterioso ocorrido na Igreja, do seu pai pouco amigo de liberalidades com os filhos, preferindo ouvi-los tocar já deitado, de forma a não lhes propiciar elogios, mas amigo de comezainas com os senhores padres, do seu avô Justiniano homem grande e travesso a ponto de desafiar o Divino quando os trovões e relâmpagos provocavam rezas a Santa Bárbara, mas que emudeceu para sempre devido a um raio rasgar o castanheiro por ele abandonado minutos antes. A conversa prosseguiu suave, serena, doce como todas as noites de Natal devem ser, aflorou a desdita de não saber ler porque no tempo dela as mulheres só tinham préstimo para parirem, a alcunha de Fargana a significar firmeza no tratamento dos pretendentes não os deixando esmiuçar os pómulos, o namoro com o meu avô logo após a vinda dele da Grande Guerra, o casamento, a dureza de todos os anos ter um filho e, da carestia reinante a obrigá-lo a emigrar, largando a família, o ensino das primeiras letras aos meninos a modos de professor das Escolas Móveis criadas pela 1ª República, as jornadas de caça e de traulitadas nas festas, sempre de faia na mão, e as caçadas com o sogro. Glória in Excelsis, digo agora ao recordar essa noite maravilhosa marcada pelas resplandecentes palavras daquela mulher dona de poucos dentes, de olhar firme e cabelos cinzentos a fazer desfilar perante mim as facécias dos filhos, a ternura e bondade da sogra, a Tia Júlia, a voracidade de um amigo do seu Francisco quando ela se atrasou na entrega de um dinheiro emprestado, o qual logo pretendeu tomar conta da melhor cortinha, o começo do envio de dinheiro da terra das libras a possibilitar o recompor da casa, do aumento da fazenda e até de comprar pequenos luxos como um cordão de ouro. As mãos também falavam, uma delas ia remexendo as brasas fortes, fascinado só lhe dizia: conte, conte. Contar o quê, meu filho? Só tenho para contar desgostos, canseiras, dores, gemidos num permanente desassossego porque na altura do Homem ter rumado em direcção ao Brasil os seus quatro filhos cabiam todos debaixo de um cesto de vindima e, afagos e gestos de ternura não se usarem naqueles tristes tempos, ficando apenas a bonomia e a bênção da Mãe. Fomo-nos deitar. Pelo outro dia, junto às minhas botas estavam dois presentes – um lenço de assoar e uma recordação da minha mãe. Mal o sino nos chamou para irmos à missa, vestiu-se de desgosto, cordão no peito, xaile a cobri-lhe os ombros, a sua mão a agarrar a minha. Na Igreja mandou-me ficar junto aos homens. Enquanto ouvia os cânticos, jurei que não esqueceria aquela noite Feliz. E não esqueço.