Droga entranhada nos bairros de Bragança

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Ter, 20/12/2005 - 14:39


São 21:50 horas duma noite como outra qualquer. A carrinha da Equipa de Rua da Associação Reaprender a Viver (ARV) parte em direcção aos bairros da cidade de Bragança, onde a toxicodependência está mais entranhada.

A poucos metros da sede da associação, mais propriamente no bairro do Fundo do Fomento Habitação, encontra-se um grupo de jovens à espera de mais uma “cena”, como lhe chamam na gíria, para curarem a ressaca que já começa a dar dores no corpo.
Depois da detenção de um traficante durante a tarde da passada quinta-feira, ao cair da noite a droga teima em não chegar e os toxicodependentes começam a desesperar. A carrinha da Equipa de Rua pára junto ao bairro e três dos seus membros tentam abordar o grupo de jovens para lhe prestar auxílio.
Contudo, a vontade de consumir mais uma dose, para que o mundo fique cor-de-rosa, mais uma vez, é mais forte do que qualquer mão amiga.
Depois de alguns minutos de conversa, um jovem de 17 anos aceitou o convite da Equipa de Rua, para participar na campanha de sensibilização daquela noite. Durante o percurso, o toxicodependente foi falando da realidade de alguns colegas e amigos, que vivem em cenários verdadeiramente degradantes.
Apesar de Bragança ter assistido ao aumento do consumo de drogas junto das camadas mais jovens, os rostos continuam a permanecer no anonimato quando chega a hora de falar sobre um vício que vai destruindo a vida, dia após dia.

Carências afectivas

João, nome fictício, é um testemunho da vida cruel levada por um toxicodependente. Tinha 11 anos quando um amigo lhe disse que os problemas que lhe assombravam a alma podiam ser resolvidos com o consumo de estupefacientes.
“Decidi experimentar porque os problemas familiares eram muitos e não conseguia encontrar solução para tanto sofrimento. Mas, passado um ano a consumir, dei conta que a droga não resolve nada e só piora as coisas, porque é a destruição da vida a cada dia que passa”, afirma.
Quando se apercebeu do beco onde estava metido, já era tarde demais, e João já não tinha forças para superar o problema sozinho.
“Eu já tentei abandonar este pesadelo mais do que uma vez. O máximo que estive sem consumir foram oito dias, mas as dores no corpo são tantas que acabei por voltar ao vício”, lamenta o toxicodependente.
Começou a consumir drogas leves, mas rapidamente caiu nas malhas da heroína e da cocaína. Com 17 anos já fez vários tratamentos, mas quando regressa a Bragança, o próprio meio acaba por levá-lo a cair, novamente, no erro que cometeu há seis anos.
Enquanto fala dos problemas que o levaram a entrar neste mundo, João fala, igualmente, dos cenários desumanos em que vivem muitos toxicodependentes, muitos deles seus companheiros de consumo.

Cenários chocantes

A carrinha da Equipa de Rua segue caminho e pára junto ao cemitério novo, um local de referência no consumo de droga, mas desta vez não encontra ninguém, apenas, algumas pratas abandonadas nos recantos mais escuros daquele local.
Depois de algumas voltas pela cidade, João aconselha os membros da Equipa de Rua a visitarem um local frequentado por toxicodependentes. Voltamos ao bairro Fundo do Fomento de Habitação, onde encontramos uma casa completamente degradada. As pratas e as seringas saltam à vista no meio duma grande espessura de lixo e porcaria.
É um cenário chocante. Nesta casa, sem água nem electricidade, vive uma pessoa que, para além de estar completamente envolvida no mundo da droga, também sofre de perturbações mentais. Aqui encontramos condições verdadeiramente desumanas e impensáveis em pleno século XXI.
Esta decadência está entranhada nalguns bairros da cidade, uma vez que, segundo um dos membros da equipa da ARV, os consumos de droga, em Bragança, não são muito visíveis na rua, mas sim em casas que se transformaram em “verdadeiras salas de chuto”.
Ainda naquele bairro, encontramos uma carrinha abandonada que serve de abrigo a um casal toxicodependente. As noites frias e a chuva são um dos inimigos daquelas pessoas, que, quando são visitados pela Equipa de Rua, pedem roupa e cobertores para se protegerem das condições climatéricas adversas.

Droga entranhada nos
recantos da cidade

A carrinha prepara-se para mais um percurso pela cidade, mas, entretanto, João fala da realidade vivida pelos toxicodependentes que não têm recursos financeiros para comprarem as doses diárias.
“A droga é cara. Uma ‘cena’ de heroína custa 10 euros, ao passo que a mesma quantidade de cocaína já custa 20 euros. O problema é que para curar as ressacas diárias, um toxicodependente consome, em média, três ‘cenas’”, realça.
Este rosto da droga afirma que, quando o corpo anda mais aliviado, costuma trabalhar na agricultura para ganhar algum dinheiro para o vício, mas afirma que tem “companheiros” que chegam a roubar os próprios familiares para conseguirem dinheiro para as doses.
A ronda da Equipa de Rua continuou rumo ao bairro da Mãe d`Água, para oferecer alguns alimentos a um casal, que se encontra completamente dependente do álcool.
O jardim António José de Almeida e a zona do Castelo foram as últimas paragens desta quinta-feira. No entanto, estes locais encontravam-se praticamente desertos, dado que o frio amedrontava qualquer forasteiro.
Segundo o testemunho de João, há alguns toxicodependentes com vontade de abandonar a desgraça onde, um dia, resolveram entrar. Contudo, o próprio meio encarrega-se de os envolver, novamente, nas teias da droga, sempre que decidem levantar a cabeça para seguir em frente.

Toxicodependentes pedem ajuda

Terminada mais uma acção de combate à toxicodependência em Bragança, o coordenador da Equipa de Rua, Fernando Pereira, afirma que a associação tem os recursos praticamente esgotados no acompanhamento dos 60 casos identificados, até ao momento.
As pessoas provenientes de famílias carenciadas, tanto a nível financeiro como social, são aquelas que entram nas malhas da toxicodependência com mais facilidade, mas o certo é que a droga não escolhe classe social, nem mesmo sexo e idade.
O coordenador da Equipa de Rua admite que resgatar uma pessoa deste mundo é um trabalho difícil e moroso, mas defende que as grandes vitórias são feitas de pequenos avanços diários na relação com os toxicodependentes.
“A grande vitória é evitar que as pessoas que estão no início se envolvam em substâncias mais pesadas e evitar que as pessoas que vivem em meios degradados caiam nas teias da droga”, acrescentou o responsável.
A distribuição de alimentos é, igualmente, uma forma da ARV se aproximar dos toxicodependentes, dado que as pessoas envolvidas neste problema vivem numa realidade fictícia, que não gostam de partilhar com pessoas estranhas ao seu meio. Por isso, Fernando Pereira afirma que o combate à toxicodependência é um trabalho de anos a fio e não de algumas semanas ou mesmo meses.
Para continuar a fazer face a este problema, a associação conta com a boa vontade da população e das instituições da cidade, que vão oferecendo alguns alimentos e roupa à associação, para ajudar quem mais precisa.
O trabalho da Equipa de Rua está a ser complementado diariamente no Centro de Dia para toxicodependentes da ARV que, segundo Fernando Pereira, tem cada vez mais visitas das pessoas dependentes do álcool e drogas.