“Contos do Nordeste”

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Ter, 06/12/2005 - 17:02


Há imagens da infância que se colam teimosamente às recordações de quando éramos crianças. Umas, difusas, perpassam, como ecos, por uma névoa de memória. Outras, impertinentes e afoitas, sobrepõem-se, quase vivas e a cores, aos anos que se foram acumulando.

Surgindo em sequências mais ou menos dispersas que nos levam a olhar o tempo suspenso das lembranças encontradas.
Como aquele em que a minha avó Maria da Glória vivia numa aldeia do concelho de Moncorvo e eu ia, Douro acima, pelos primeiros calores do Verão, reviver a liberdade de me saber num espaço que não me cansava de descobrir, nos mesmos pormenores, em cada novo ano. Eram os lameiros onde escutava a cigarra e seguia a formiga da fábula; eram os riachos que escarafunchava à cata de rãs; eram as cerejeiras onde me empelouricava, de olhos nunca cheios. E eram os serões. Onde, no fresco da varanda, à mistura com o cheiro das amêndoas por partir, a minha avó dobava as histórias com que enovelava as noites que os netos haveriam de sonhar. Com mafarricos e bruxas dançarinas, encruzilhadas de destinos por achar, santas revelações e outras pequenas epifanias que nos tiravam o sono e nos davam o sentimento de pertencer. A um espaço construído sobre vidas partilhadas, caminhos reconhecidos, crenças comuns e destinos que pareciam feitos da mesma vontade de existir.
Após a morte da minha avó, esse tempo ficou mudo e quieto num recanto de memórias por acordar. Até que, há alguns anos, por oferta de um amigo, me vi a mãos com um livro de contos do nordeste.
E, neste ponto da crónica, confesso ao leitor que tenha tido a paciência de se arrastar até aqui que, durante a minha vida de leitora intensa e curiosa, mantive, durante muitos anos, uma relação de “donjuanismo” com os livros. Lendo compulsivamente, como quem vai coleccionando conquistas, deixando atrás de mim um universo de seres pejados de páginas. Hoje – perdida que está a minha ânsia de “todos os livros” – continuo a ter a mesa de cabeceira abarrotada deles. Mas muitos são já releituras. Livros que li uma vez e com os quais marquei um segundo encontro. Certa de que há relações que crescem em sentido pela insistência com que as vamos recriando em cada dia.
CONTOS DO NORDESTE, de Jorge Tuela, é um dos meus “casos” de leitura.
Livro de cabeceira, mostra-se capaz de nos fazer agarrar à almofada, em cada história de mistério. Seja com a Maria Capela que se apegava à Senhora do Rosário para vencer as artes malignas do chifrudo “Barzabu”. Ou com o pobre Chico Topelha, perseguido pelas bruxas e o demo em pessoa, no bojo agourento da noite. Ou, ainda, com a alma penada do padre Careja, eternamente expiando o seu pecado de ter pisado a hóstia que das mãos trémulas do vinho se lhe escapara para o chão.
Livro sensível de lucidez, CONTOS DO NORDESTE alcança a verdade do drama que se esconde em cada homem que procura, sem saber como encontrar. Na tristeza do pobre João Trauliteiro e do seu filho que olha para lá da miséria e não ousa desejar o que vê. Na vingança de Domingos Talha-Grão e Gracinda Poneca que recai neles sobre a forma de arrependimento incapaz de qualquer redenção. Na dor de Justina, “prenhe de luz” (e tão próxima da Madalena de Torga...) que descobre, escorraçada da casa paterna, que a “ noite veio ao nascer do dia”.
Livro tão livre no humor que provoca, no riso que rasga as angústias e faz perceber a grandeza por trás das pequenas imagens feitas de ingenuidade e alegria da descoberta. Como aquela que o Chico, catraio mais velho do Zé Troulas, achou nos tempos idos da brigantina Feira da cantarinhas; onde se desembarrigou de misérias, engolindo até as carabunhas das cerejas, o que provocaria, aflitas horas mais tarde, um caso misteriosamente divertido, num surpreendente penico escarafunchado pelo atónito médico da aldeia. Ou do espanto da simplória Ana Carvalhosa que, vendo-se grávida do marido que emigrara para o Brasil, se deixa convencer de que só o ardiloso padre Zacarias seria capaz de lhe fazer os olhos da criança que esperava...
E o que fica por contar, do nordeste, nestes contos, é apenas aquela zona da nossa memória que ninguém consegue filtrar. Porque é nossa. E porque lá vivem, ainda, as avós que julgamos ouvir quando lemos histórias contadas...