Cronicando... Livre-nos Deus

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É apanágio de algumas terapias que têm invadido o ocidente referir que nada do que se deseja falar deve ser retido; caso contrário, o paciente sujeita-se aos transtornos da garganta. Já a raiva contida reflete-se no fígado e causará transtornos hepáticos. Como não tenho vontade de apanhar um resfriado nesta época do ano e dispenso a azia, não poderia demorar por muito mais tempo a apreciação ao programa eleitoral do CDS. Se motivos não faltassem, assistem pelo menos dois: a participação que tive na iniciativa Ouvir Portugal (ao que se dizia base deste programa) e as propostas apresentadas para a educação (no momento em que se inicia mais um ano letivo), com os problemas de sempre.

Se ao primeiro motivo não aportam razões por aí além, quando ouvi as medidas para a educação, achei, em primeiro lugar, que fossem fake news ou algo projetado a partir de uma das crónicas do Ricardo Araújo Pereira. É que de tudo o que há para fazer na educação, os pontos mais relevantes a apresentar, têm a ver com o aumento do número de vagas no privado e a avaliação dos professores. Uma garantia posso dar: não foi das terras transmontanas que levaram tal ideia; pode, por isso, aventar-se a hipótese que foi na metrópole que tal alinhamento foi cozinhado. Por aqui não há tantas crianças quanto isso, nem tantas creches particulares que se necessite desta linha. Já o segundo, não só assenta num duvidoso critério meritocrático, como apresenta as instituições de ensino superior (a serem escolhidas) como referenciais da avaliação dos professores. Em resumo, a par da revisão da carreira que faria sentido desde que todos os interlocutores estivessem representados, a proposta inclui ainda que a progressão decorra da prestação de provas públicas a realizar em instituições do ensino superior. Não me restam dúvidas de que a medida colhe junto dos professores que aspiram a ser doutores e acham “chique” a deambulação pelos corredores universitários. Todavia, os professores que valorizam ser professores, que manifestam verdadeiro interesse em estar na sala de aula e junto dos seus alunos irão entender tudo isto como desperdício de tempo e, mais uma vez, um processo burocrático que não só não irá testar a capacidade científica, como nem sequer permitirá aferir das competências pedagógicas e didáticas que estão presentes na sala de aula e, essencialmente, na relação direta estabelecida entre o professor e o aluno de acordo com o contexto real em que ambos se inserem.

Também não é necessário proceder a uma análise muito aprofundada para concluir que os planos de estudo apresentado pelo ensino superior, inclusivamente para os cursos via ensino, são, de tal modo, desfasados do que é ministrado nos outros níveis de ensino que, a um professor em início de carreira resta apenas a esperança de que os programas sejam iguais aos que ele frequentou e que, num assomo de liberdade, não tenha mandado os apontamentos para a reciclagem, Na verdade, uma vez em que um professor universitário foi questionado sobre esta discrepância limitou-se a dizer que a universidade não existia para preparar ninguém para ser profissional mas competia-lhe dar as ferramentas que capacitassem, neste caso o professor, a refletir e a ser capaz de procurar os saberes de que iria necessitar junto dos seus alunos. Assim, quando se refere que, no âmbito do pacto para a educação se irá propor o perfil do professor para cada área disciplinar, não serão necessários quatro anos, mas dez ou doze, dado que tal implica a reformulação de todo o sistema e encontrar o ponto por onde se lhe quer pegar.

Na década de oitenta, o boom das novas pedagogias estava no auge e a investigação aproximou os investigadores das escolas, ainda que de modo pontual. Porém, esta tendência foi-se esbatendo e, passadas quase três décadas, deixou de se fazer reflexão sistematizada aumentando o fosso existente entre universidades e escolas do ensino básico e secundário. Por isso, eleger um avaliador que não conhece o contexto do avaliado é ideia que não colhe em nenhuma corrente pedagógica, mas admissível num pensamento retrógrado ancorado na saudade dos exames nacionais de quarta classe, que trazia as crianças das aldeias até às capitais de distrito onde, sob olhar ameaçador, resolviam exercícios e esperavam resultados.       

Em abono da verdade, há países onde a avaliação dos professores segue esse modelo. Porém, esses já há muito que arrumaram a casa e cedo entenderam o que é a coerência, a coesão e a visão processual na educação. Por cá… e com propostas destas, resta-nos fazer o sinal da cruz e repetir o que nossos avós nos ensinaram: “Livre-nos Deus, (…) dos nossos inimigos.” Sobretudo dos que se querem fazer passar por amigos.

Raúl Gomes