Não haverá ninguém, certamente, que não conheça a famosíssima canção com que José Afonso estigmatizou o Estado Novo a que alguns historiadores também chamam Segunda República e que terá sido, metamorficamente falando, uma República de Vampiros. Música de inconfundível melodia, com letra do maior impacto social e político, surpreendentemente mantem plena pertinência, mesmo agora que os portugueses se regem por um novo regime, que muitos não consideram genuinamente democrático, por diversas e importantes razões. Os vampiros da canção de José Afonso voavam em bandos pela noite calada, silenciosos e discretos para da melhor forma chuparem o sangue fresco da manada, mantendo um certo recato, por isso mesmo. Comiam tudo e não deixavam nada. No alvor da democracia, porém, metamorfosearam-se em canibais sem escrúpulos, desavergonhados e desapiedados e, associados em gangues e clãs políticos e argentários, não se limitam agora a sugar o sangue ao povo. Também lhe devoram as entranhas e lhe roem os ossos, e continuam a tratá-lo como reles manada. Canibalizam tudo à luz do dia e não pagam nada. São os mordomos de Portugal inteiro. Tomando como credíveis as iniciativas do Ministério Publico (não há razão para pensar que o não sejam) não será estultícia considerar o regime político vigente como uma República de Canibais. A analogia é triste mas cruelmente verdadeira. O Governo da República, a Administração Pública, central e local, as Empresas do Estado, os Partidos, a própria Justiça, os grandes clubes de futebol e a banca pública são, ou foram em algum momento, canibalizados por ousados machuchos que lançam a Democracia no descrédito, o Estado na desgraça e a Nação na miséria. Em Portugal, o crime corporativo, ou do colarinho branco, melhor dizendo, é sistémico. Salgado, Sócrates, Berardo, Vara e Vieira são apenas as personalidades melhor cotadas na tabela do Ministério Público Tudo atestado em processos judiciais de grande impacto político e mediático que comprometem um ex-primeiro ministro, vários ministros, presidentes de câmara, banqueiros, dirigentes desportivos e envolvem instituições poderosas como a CGD, o Novo Banco e o Sport Lisboa e Benfica, entre outras. Consta, até, que já há tribos de canibais a dançar alegremente à volta da fogueira do Plano de Recuperação e Resiliência. A seu tempo se verá no que isso vai dar. Acresce que na República dos Vampiros tudo se passava à sorrelfa sob o olhar grave e conivente do dito “Venerável Chefe de Estado”. Na moderna República dos Canibais tudo se desenrola às claras, com muita luz, cor e som e com a complacência do sempre sorridente e inimputável “Mais Alto Magistrado da Nação”. Portugal, hoje, pouco mais é que uma vaga recordação histórica que, para alguns, até nada de bom terá. Uma região mendicante da Europa rica. Um estado marginal e subserviente que, entre outros atentados aos direitos fundamentais, impunemente envia dados de cidadãos inofensivos para governos estrangeiros sinistros. Uma triste Nação que muitos continuam a pretender converter, com pés de veludo, num estado satélite de uma quimérica URSS, de que Cuba e a Venezuela são paradigmas palpitantes. Quanto aos portugueses já nem se sabe bem quem são e o que são. Talvez sejam mesmo uma manada mansa como dizem. Figurantes de uma democracia desfigurada em República de Canibais. O pior de tudo, porém, é que, aparentemente, não há como dar volta a tão dramática situação. Em Belém não se vislumbra rasgo suficiente, São Bento, é óbvio, protege os canibais mais graúdos e os partidos do poder são a sua incubadora privilegiada. O empenhamento corajoso de meia dúzia de magistrados, com destaque para o procurador da República, Rosário Teixeira, o juiz Carlos Alexandre e o inspector tributário Paulo Silva, verdadeiros heróis dos nossos dias, não parece ser força bastante. Urge que uma revolução aconteça. Na certeza de que na Europa moderna as revoluções não se fazem nas ruas, a tiro e à bomba. Operam-se nas urnas com a arma do voto na mão.
Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico (VS 15/7/2021)