Um espírito livre

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Trunfa angolana, densa barba, verbo solto, assim nos apareceu, na Praça da Sé, Teófilo Valdemar, que entraria em breve no Mensageiro de Bragança, onde pontificava Carlos Pires, em cuja casa da Rua do Norte ele se aboletava, quando as horas se distraíam madrugada fora. Saiu Carlos Pires uns tempos, ficámos Marcolino Cepeda e eu. Com Manuel de Jesus, Teófilo assinaria coluna de reflexão crítica sobre a política nacional. Fazer jornalismo antes do 25 de Abril, numa cidade fechada, não era pequeno risco. O director do semanário, padre Manuel Sampaio, dava- -nos liberdade na escolha dos assuntos e contornava a censura prévia. Esta definia-se após o almoço, no café Chave d’Ouro, à esquerda de quem entrava, onde se cumprimentavam as autoridades civis, militares e religiosas, como rezava a sintaxe do Estado Novo. Veio a liberdade de Imprensa. Não esperávamos, por isso, a decisão episcopal de, em Outubro de 1974, ver o director afastado, caso que se tornou nacional. Os colaboradores lavraram (redigi eu) comunicado contra os que só viam vermelhos à frente, que trariam o inferno à região. Assinaram, além do escriba, Teófilo Waldemar (hesitava em V / W, antes de ser Teófilo Vaz), Marcolino Cepeda, Humberto Gil, Carlos Pires, Desidério Martins, Onofre de Castro e Manuel Domingues. A segunda experiência em democracia indecisa deu-se com o ènié – Uma Voz do Nordeste Português, cujo número zero saiu em 23 de Abril de 1975, 30 edições até 24 de Dezembro. Dirigido por Eduardo Carvalho, eram redactores Carlos Pires e Teófilo Waldemar, com a liberdade de movimentos semanalmente em perigo. Entrei na equipa mal regressado de França. E tudo se precipitou com texto meu de 26 de Novembro sobre um comício do Partido do Centro Democrático e Social resumido em vontade assim expressa por Galvão de Melo: «Temos que destruir os comunistas se não queremos ser destruídos por eles.» Havia assaltos a sedes dos partidos de Esquerda, atentados e rebentamentos quase todos os dias. Frequentar o café Ponto de Encontro era apodarem-nos de comunistas, que não éramos. A vida acalmou ao entrarmos na Faculdade de Letras de Lisboa, Teófilo e João Jacob em História, eu em Filologia Românica. Aquele, contudo, vivia em Castanheira do Ribatejo e não se interessava pela vida jornalístico-literária de Lisboa, aonde aportou, entretanto, Carlos Pires, para encarreirar na Imprensa escrita. Passara a vestir bem, inesperada gravata, constituiria família cedo. Mas a preocupação era regressar à terra, onde se sentia pássaro livre. Nas férias dos meus cinco anos de Hungria, multiplicávamos sessões nocturnas, ele bebendo a suas duas cervejas, entre informações de primeira água, Marcolino e eu mais comedidos. Recordo como, em Agosto de 1982, batemos em Conversa Acabada, a que assistíramos na Torralta, e, já na sua casa da Estacada, discutindo, equacionámos a federação, ou coisa do género, de nós, aquém-Douro, com a Galiza. O filme era sintoma de uma ruptura mental, com implicações económicas e estratégicas, no tecido da nação, que ele denunciaria até ao último suspiro. Em 1984, relancei Amigos de Bragança, ainda dirigido por Eduardo Carvalho e redactado por Teófilo, Marcolino e eu. Na fotografia que acompanha a entrevista ao presidente da Câmara José Luís Pinheiro, Teófilo já assume o rosto de hoje, embora com mais cabelo. Prosseguimos noitadas com Jacob e Jorge Morais; em Agosto de 1988, mudámos para a lareira do pré-casadoiro Marcolino, ladeado pela Mara, incansável. Nos últimos 32 anos, era em casa destes que reuníamos, sempre que eu subia a Bragança. Às vezes, passavam meses sem se verem, e menos um esquivo Jacob. A mesa, já composta, perfumava-se de conversa à solta, entre farpas e projectos, enfim louvando a renovação a que o director procedia no Jornal Nordeste desde 2015. A partir dos anos 90, contam-se outras experiências: A Voz do Nordeste, intervenção radiofónica e comentários de má-língua, Imprensa escolar, reunindo ao ensino cargos e iniciativas que muito valorizaram a Escola Secundária Emídio Garcia. Os 150 anos do ex- -Liceu (2003) significaram comunhão excelente entre gerações. Fica um percurso em defesa da terra sagrada do Nordeste. Ficam as conversas depois da meia-noite, saídos do café Flórida, quando Marcolino e eu, no luar da Praça da Sé, o animámos a filiar-se no Partido Socialista – de facto, ele desejava um Partido Soarista, tão indefectível era de Mário Soares. Não admirava menos a beleza sob forma de mulher, que resumia na sua; os filhos completavam-no. E, para estranheza minha, gostava de cozinhar. Ao dar-me boleia em noites de sinceno e geada até ao Bairro da Mãe d’Água, o banco estava sempre pejado de papéis e jornais. Esta dispersão de décadas merecia uma recolha de textos que iluminassem o historiador e político (no melhor sentido), para reflexão nossa. A tristeza é uma ponte que nos leva à margem da saudade e da admiração pelo espírito livre que foi Teófilo Vaz, querido Amigo.

Ernesto Rodrigues