Túnica de Nesso

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A túnica de Nesso é o título de um livro do notável escritor que foi Tomaz Figueiredo o qual considero no restrito naipe de fecundos guardiães e criadores da língua portuguesa a emparceirar com Francisco Manuel de Melo, Manuel Bernardes, António Vieira, Camilo, Eça, Raul Brandão e Vitorino Nemésio. Nesso figura mitológica ofereceu uma túnica confeccionada com o seu próprio sangue e sémen à mulher de Héracles confiando- -lhe o segredo, da peça de vestuário ter o condão de lhes restituir o amor do Herói que ela tinha perdido. O herói, Héracles, recebeu a túnica, vestiu-a, quando a pretendeu retirar a mesma arrancava-lhe pedaços de carne do corpo e tal tortura causou- -lhe a morte. Uma morte horrorosa. Era a vingança de Nesso contra Héracles. O autor de Procissão de Defuntos foi obrigado a suportar túnica semelhante em virtude de conflito eriçado de sofrimento dado ter-se recusado a participar no sistema de influências da poderosa família da mulher, recebendo em paga o ostracismo profissional, forçado a recolhimento no hospício do Telhal, sendo a mais dolorosa a ruptura familiar a envolver a cruel separação da querida e idolatrada filha. A túnica de Nesso em versão dos anos cinquenta do século passado. Se o leitor pretender esmiuçar quão grande foi o calvário do magnífico prosador faça o favor de ler a reedição da Imprensa Nacional do romance A Gata Borralheira, ganhando refulgente alegria de viver nestes tempos sombrios lendo toda a obra do nobre escritor minhoto. Trago à colação o descarnado drama de Héracles como exemplo inventivo dos homens no tocante a representação imagética da terrífica dor moral, do sofrimento que não se apaga, que dilacera o corpo e a mente enquanto os sofredores viverem. Ora, a tragédia causada pela pandemia em geral e na Santa Casa da Misericórdia de Bragança é virulenta túnica Nesso a corroer os familiares dos infelizes que não conseguiram sobreviver. Estranho Mundo este! Um mundo que ao longo dos milénios tem suportado várias pandemias causadoras de milhões de vítimas porque a ciência prodigiosa não conseguir antecipar- -se, totalmente, aos eflúvios deletérios emanados pela própria humanidade. Filósofos e homens de ciência têm construído obras perenes onde abordam a incapacidade de nos anteciparmos ao tempo, fora da órbita maravilhosos sonhadores (Júlio Verne p.e.) e dos muitos génios que povoam as paredes das pinacotecas, bibliotecas e outras Instituições semelhantes. O Museu Arte Antiga exibe sólidos instrumentos pictóricos a testemunharem as nossas formas de evasão capazes de amortecerem ao leve a amargura instalada no coração dos impedidos de acompanharem os entes queridos à última morada. Os estudos acerca dos efeitos da peste enxameiam nas prateleiras das livrarias, os novos videntes encartados ou não atafulham de palavras os noticiários televisivos tal como os bruxos de Londres no decorrer da peste (Daniel Defoe) faziam nas casas ou nas ruas lendo as mãos, as entranhas de animais ou esparsas nuvens vindas dos defumadouros. Os peles-vermelhas provocavam e liam os sinais de fumo, agora um qualquer licenciado em biologia debita nos jornais e nas rádios palavreado oco de substância, cofia o queixo, sem esquecer os membros da confraria do badalo, avolumando o ruído ensurdecedor daqueles interessados em cogitarem profundamente sobre as verdadeiras causas da morte dos seus parentes. Para lá do óbvio e ululante procurei saber a origem do vertiginoso alastramento da maleita na Santa Casa de Bragança levando em linha de conta o nódulo escuro de Requengos de Monsaraz. Recebi respostas tonitruantes, a mais sensata chamou-me a atenção para a deterioração das instalações. E, o respondente remeteu-se ao silêncio. Se o tema fosse frívolo lembrava a frase do futebolista, previsões só no fim do jogo, sendo sério, grave e insondável acerca de quando teremos novas e mandados relativamente à extirpação da maligna fornecedora de pessoas à megera da Gadanha, no que tange à acção governamental estou apreensivo e desconfiado na luta contra a crescente onda de infecções, no que tange à plataforma instrumento de trabalho escrevo não se discute a parvoíce, o erro, já no referente à possível interdição de visitar os cemitérios no Dia de Finados, a túnica arrancará lágrimas, sangue raivas surdas ou gritadas. Nem de outra forma pode ser!

Armando Fernandes