Por mero acaso no remexer da caótica aglomeração de CDs musicais encontrei dois dos muitos do prematuramente desaparecido cantor argentino de voz de rouxinol Carlos Gardel, cuja popularidade em Portugal até chegou à barbearia do saudoso Senhor César dos Santos Barata, onde o exímio escanhoador de queixos ao patronímico Carlos acrescentou o Gardel apodo recebido por parte das dezenas de clientes muitos deles esforçados repetentes do Liceu fronteiro à conhecida casa de corte de cabelos e barbas de merecida fama na cidade. O Carlos Gardel bragançano idolatrava o Benfica, o jogo da sueca e nunca perdia a ocasião de implicar com o camarada de profissão, dito Vila Real. Uma viagem a ir ver o mar possibilitou-me ouvir no automóvel o formidável cantante da sua Mi Buenos Aires querida, a frenética, belíssima e sulfúrica cidade debruçada sobre o rio da Prata separador da erótica Montevideo onde velho amigo revolucionário a sério torrou parte da fortuna familiar nos casinos enquanto aguardava ordens do controleiro para entrar em acção nos conturbados anos dos Tupamaros. Nesse tempo do tocado inúmeras vezes numa casa da rua Nova (na qual dançava aos tropeções), o dito tango dos barbudos em homenagem aos cubanos revolucionários lia os textos do Padre Camilo Torres, as prédicas do sinistro (na altura desconhecias as suas barbaridades) Che Guevara e acreditava que a história iria absolver Fidel Castro. Ainda acreditava no Pai Natal…! Para lá de Jorge Luís Borges (que uns rapazes queriam à viva força coloca-lo no rosário de crendices do envernizamento das supostas ascendências transmontanas), nada sabia da terra do também tocador de Bandemónio e tanguista Astor Piazzolla, só mais tarde tive contactos a permitirem um melhor entendimento do tango portenho, vislumbrar a famosa livraria na qual o eterno candidato ao Nobel, o falado Borges tinha cadeira reservada, e, adiós pampa mia, a refulgente e melancólica ária para mim, canção escutada nos quatro cantos do Mundo porque é signo/sinal de uma identidade incorporadora das raízes genéticas da outrora farta e admirada Nação. Nos bailes quer do pífio elitista Centro (fui sócio de motu próprio, não vias urinárias), quer da Associação fundada a par de outros pelo pai dos irmãos Quintela (uma lápide do TEUC coimbrão assinala o prestígio de Paulo Quintela colocada numa casa na Rua Alexandre Herculano), o ritmo vindo do continente sul-americano agitava os corpos nos bailes, levados a cabo no fim do ano velho e início do nascituro ano Novo, destacando-se em tais palcos uma costureira moradora nos Batocos, levando vários mirones a irem observá-la à Associação pois a sua posição na escala social impedia-a de pisar as tábuas do Centro. E, agora? Agora apesar de os tempos serem outros, permanecem tabus não alicerçados no suposto pedigree ancestral, sim do vaivém dos modelos recriados pelas redes sociais, o esbatimento das normas de tratamento entre as pessoas, o avacalhar de programas televisivos nos quais a língua portuguesa sofre tratos de pelé para lá do tango ter perdido adeptos dada a avassaladora vitória das canções de língua inglesa, por isso o tango subsiste em nichos reservados ao estilo do Turf Clube o que muito deve agradar a um reformado crítico gastronómico e a um seu amigo nado na margem esquerda do rio Fervença, também na situação de sabática gozação da vida. Para futuras e escassas viagens (raios partam a pandemia) já seleccionei outros compactos e intérpretes, p. ex. Manolo Escobar. Nestes primeiros dias do ano vou reler o acídulo livro de Rubem Fonseca «Feliz Ano Novo», em que o antigo jornalista disseca a violenta vida urbana no Rio de Janeiro a par de ouvir os tangos palavrosos da campanha eleitoral. A cousa promete, à cautela o arguto Jerónimo de Sousa não participará no «agarra-me senão vou-lhe bater», os fumegantes críticos do Flórida dirão trombas ou fuças adornando as palavras com grinaldas de carrejão (estilo Belisário) evitando o Chega e o antigo sócio na geringonça Bloco de Esquerda. A tanguista Catarina (não Catrineta) e o Ventura em pose aristocrata patuleio ensaiaram obtusos passos de pedaços de asno (obrigado Senhor António Sérgio), sim de acerado e salivoso duelo. O tango que não pretendo perder é entre Costa e Rio, o primeiro executará meneios de sabor indiano, o segundo escorado no vernáculo da Ribeira portuense, numa coreografia verde e vermelha pois a Pátria primeiro declaram os dois. E declaram bem! Feliz Ano Novo.