Faz agora um ano que neste espaço falava da professora-mestra e dos rapazes voluntários de calças rasgadas capazes de rebolar no chão com miúdos sem natal. Pelas minhas contas, já vai em ano e meio que me propus nunca abordar assuntos relacionados com a igreja, não só porque me vou apercebendo de que a minha espiritualidade cresce inversamente proporcional à religiosidade, como sou um defensor de que se deve dar à divindade o que é da divindade e ao mundo o que é do mundo. O problema surge quando as pontas se tocam e o passado nos obriga a assumir posições, sob pena de lançarmos por terra os valores que nos definem e configuram o modo como estamos em sociedade.
Quero acreditar que a notícia transmitida pelos jornais e televisões sobre alegados maus tratos a doentes internados, por um sacerdote da Obra do Calvário em Beire (Penafiel), tenha passado despercebida a muitos leitores e espetadores, fosse pelo alinhamento dos telejornais, fosse ainda porque a figura do padre ancião em nada condiz com os crimes que lhe são imputados. Convirá recordar que esta Casa do Calvário deve o nome à Quinta onde foi erigida pelo Padre Américo para, numa altura em que a assistência social era uma miragem, poder acolher seres humanos com doenças incuráveis e rejeitados por todos. Desnecessário será dizer que a Quinta do Calvário está intimamente relacionada com Paço de Sousa, uma obra do mesmo padre destinada a crianças e jovens abandonados. Não menos relevante é dizer que, desde 2012, a comunicação social tem feito eco de alegados crimes e maus tratos, quer aos jovens, quer aos idosos destas duas instituições implementadas no Vale do Sousa, e localizadas em vários hectares de terrenos ricos no solo, na história e na cobiça que despertam e para a qual fui alertado aos dezanove anos.
Com essa idade, fui convidado a passar um fim de semana em Paço de Sousa. Iniciado em Rilke e fazendo parte de um clube que discutia literatura tendo por “presidente” Daniel Faria – o rapaz raro – como lhe chamaria o Público em 2001, acedi ao convite e lá fui com o Carlos Santos – um gaiato de origem transmontana. Foi em Maio. Hospedado na casa grande de Paço de Sousa, tive de imediato acesso à cozinha onde as “senhoras” (voluntárias) ajudavam os rapazes a preparar o jantar e logo me ofereceram um pedaço de broa confecionada por eles. O sábado foi de convívio com a bola, a quinta, os animais, as rezas e toda aquela vida partilhada.
Domingo era para o Calvário, o que só pelo nome me arrepiou. Chegámos por volta das dez. O padre, talvez o que agora está a ser acusado, disse à Maria que me mostrasse a casa. E Maria, de trinta e três anos, foi a anfitriã. Subiu e desceu escadas, levou-me ao jardim e estendeu roupa na varanda. Ao meio dia, foi comigo ajudar nos almoços dos acamados. Depois foi a nossa vez de comer. Durante a refeição, Maria disse: “- O dia está lindo!”, ao que o padre contestou: “- Ó Maria, o que te dizem os teus olhos que não veem sobre o dia?” E ela: “É primavera. O sol está quentinho, as flores cheiram bem e os pássaros cantam mais.” O almoço continuou, falou-se de outras coisas, mas a pergunta do padre pairava na minha cabeça.
Ao entrar no carro para regressar a Paço de Sousa, ganhei coragem e perguntei ao sacerdote porque tinha feito aquela estranha pergunta. “- Então não se apercebeu?”; “- De quê?”; “- A Maria é cega. Veio para aqui muito pequenina. Foi encontrada numa gruta numa dessas serras daqui. Passou tanta fome e tanta miséria que a córnea dos seus olhos cegou. Mas como está aqui há tanto tempo, faz as tarefas, conhece todos os espaços e é feliz!”
Compreende-se que à luz dos valores de hoje, em que crianças passam horas nos computadores, e os designados “incuráveis” são arrumados em salões e camas com a pomposa designação de paliativos e continuados, compreende-se que faça confusão que haja quem seja capaz de devolver esperança e crie projetos para alguém se poder realizar dentro das suas limitações. Quem não vive os valores do Padre Américo não os poderá entender, seja agora ou quando for. Mas, pelo menos, não se cobice Paço de Sousa ou a Quinta do Calvário por causa dos euros que possam render. O melhor que têm é o potencial humano que ninguém quis e ninguém quer, e esse, só os poucos que foram escolhidos – mesmo dentro da igreja – poderão entender o seu valor. Boas festas e que muitos renasçam pelas obras porque de fé está o mundo cheio.
Raúl Gomes