A estrada serpenteada da Serra do Marão foi conduzida durante décadas e décadas por Transmontanos e visitantes. Já nessa altura se registavam muitos acidentes que assinalavam o seu lado negro e violento. Aqui e ali, imensas filas de carros a aguardar, entre ravinas, a chegada dos bombeiros para desobstruir a estrada. O som das ambulâncias ecoava no silêncio sepulcral. Sabíamos o perigo daquela estrada e em alguns lugares era assustadoramente evidente. Encostas inteiras, muitas vezes fustigadas pelo fogo, permaneciam inalteradas anos e anos. A insegurança era vivida com preocupação pelos adultos, mas sempre desvalorizada pelas crianças.
Os momentos de descanso interrompiam a exaustão da viagem. Recordo com saudade, as merendas à sombra do arvoredo, os piqueniques nas fontes naturais, a excelente água da Serra, a família reunida nas longas horas de viagem entre Mirandela e o Porto e no caminho de regresso. O dia de viagem começava bem cedo. A minha Avó Alaíde preparava os “tupperwares” dos bolos de bacalhau, os rissóis e os panados, acompanhados com o pão da D. Inês, as laranjadas tang em arcas frigorificas coloridas coincidiam com a frescura dos dias. Em agosto, depois da noite dos Bombos, partíamos habitualmente para o mês de férias nas Caxinas. A carrinha Toyota Hiace transportava-nos bem repleta, até ao destino final. No Marão repetiam-se as curvas contracurvas, solavancos e demoras sucessivas, pela passagem de um camião maior.
O Marão sempre caraterizou as nossas gentes e o nosso território. Como Miguel Torga bem apreciou em um Reino Maravilhoso: “Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a espessura desembainhada: - Para cá do Marão, mandam os que cá estão!.... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?”
Da Serra, memórias permanecerão inalteradas em todos os Transmontanos. Umas boas, outras assustadoramente más. Muitos anos passaram e, finalmente, estamos a dias de inaugurar o Túnel do Marão. Um sonho concretizado, uma mais-valia óbvia para todos – e são muitos, que “passam o Marão”. Um investimento que terá o óbvio retorno para o desenvolvimento socioeconómico do interior, fundamental para a coesão territorial.
Ainda a este propósito, recentemente, um amigo do Minho abordando o custo excessivo pela paragem da obra, garantia que o túnel não era necessário, porque não havia pessoas. Dizia ele que “Era um investimento avultado, para ficar às moscas”. Fiquei surpreendida pela ignorância. Defendia, como contraponto e com unhas e dentes, uma fábrica de pneus da Continental Mabor, em Vila Nova de Famalicão que estava sem acessos e onde trabalhavam 3.000 pessoas. Havia que estabelecer prioridades, dizia o Senhor. Expliquei-lhe depois a necessidade do Túnel e o potencial de crescimento regional que poderá catapultar. Das memórias da Serra ficará o eterno horizonte e o silêncio sepulcral. O pior e o melhor dos Mundos no mesmo Marão. Felizmente, a serra das memórias manter-se-á viva.
Serra das Memórias
Júlia Rodrigues