- Também não vai tratar da dos outros. – Assim terminava o raciocínio um barbeiro acima dos cinquenta com um cliente da mesma idade. Falavam de uma vinha que, segundo eles, tinham “deixado morrer”.
A personificação da cepa por estes dois homens, transporta-nos a outras eras em que árvores e plantas eram consideradas da família e se perpetuavam por gerações. Contavam-se histórias acerca delas; iam-se repetindo e enriqueciam o património e a identidade daquele núcleo social. Estes homens recordaram-nos o tempo em que o vinho era vinho e trouxeram para o presente todo o simbolismo que a vinha tinha na cultura dos países mediterrânicos e onde nunca adquiriu uma dimensão comercial mas um domínio afetivo que se sobrepunha a tudo o resto. A “boa pinga” distinguia o bom lavrador e as aldeias eram reconhecidas pela preciosidade do delicioso néctar conferindo-lhe identidade, tal como o Papa Francisco entende que o vinho fornece um caráter identitário à festa: “Não se pode encerrar uma festa de casamento bebendo chá. O vinho é necessário para uma festa.” – Terá dito depois de saudar casais que festejavam cinquenta anos de casados.
A identidade é também caraterística que define um povo e o torna distinto dos outros; é de tal modo fundamental que quase todos, senão todos os povos celebram o orgulho da pertença e os seus valores enquanto nação. Por cá é o dez de junho. Sendo este o dia da morte de Camões, comemorou-se em 1880 sob a égide dos ideais republicanos em plena monarquia, já que antes se comemorava o Santo Anjo da Guarda de Portugal e onde, de certeza, não faltaria o bom vinho e as festas da arraia-miúda recordada, este ano, no discurso do Presidente da República. Um discurso patriótico, bem estruturado e de uma quase exaltação épica há muito arredada dos discursos políticos. O povo que “não vacila, não trai, não se conforma e não desiste” sentiu-se bem nestes oito minutos que o transformaram nesse herói coletivo capaz de, “por perigos e guerras esforçados” dar novos mundos ao mundo e, ao mesmo tempo, defender o torrão pátrio. Como discurso presidencial que foi, nele se focaram as rádios e televisões e tudo decorreu sem dramas. A dúvida, que não é metódica, emerge quando tais palavras são proferidas na continuidade de outras, desta feita produzidas pelo professor João Caraça, presidente da Comissão Organizadora das Comemorações que veementemente afirmou “não podermos deixar a Europa apoderar-se da nossa nação”, referindo que um país é muito mais do que um mero conjunto de indicadores económicos e financeiros. De facto, abandonando o discurso politicamente correto, o professor João Caraça teceu duras críticas a este modelo de Europa que perde a sua identidade e os fundamentos da sua construção para se lançar num modelo onde deixou de haver lugar para a dignidade dos povos em prol de elites incapazes de interpretar a vontade de milhões que acreditaram num modelo de integração, partilha e solidariedade que se desmorona a cada passo.
Boas lideranças não aparecem por acaso. Ao braço forte dos que que lutaram por esta terra e no-la ofereceram, deveriam ter sucedido pensadores e estrategas com visão de futuro que não se deixassem enredar nas intrigas palacianas e fossem mais além das rendas, prebendas, títulos e morgadios. Infelizmente nada disto aconteceu. Perdeu-se a visão estratégica, recentemente fez-se o papel do “bom aluno” e em nome disso vamos deixando que nos desapropriem do nosso futuro como nação tal como disse Caraça. Ao ler isto, vem à memória uns versos colocados na boca de uma criança. Corria o ano de 1940. Era festa na aldeia e para animar, lembrara-se a professora de ensaiar um poema dialogado entre o anjo bom e o mau, personificados por duas crianças dos seus sete anos. Num determinado momento, o anjo mau: “Portugal, serás vendido/ de corpo e alma ao estrangeiro,/ Portugal estás perdido,/ já perdeste o teu roteiro.” Entristecendo o bom. De certeza que tais palavras nunca ecoaram nos ouvidos do professor. No entanto, apesar dos anos que as separam, parece que as atualizaram, desprovidas da candura infantil.
O melhor é, por isso, cuidar da vinha, beber uns copos e em nome do humanismo europeu saber ser Portugal com a dignidade que séculos de História conferem e desejar que em cada português nasça um chefe que, com visão se assuma um empreendedor na construção de uma sociedade mais justa, mais equilibrada e mais solidária.
Por Raúl Gomes