Quando a neve era farinha

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Não sei se é uma grande novidade, mas... o Natal está a chegar. Não é uma coisa destes dias, nem muito menos de Dezembro. Não. Em Agosto já eu comia chocolates alusivos à quadra, ainda que derretidos e com cor esquisita. Desconfio que pertenceram a Natais passados, e que ficaram esquecidos em stock. Ainda assim, quem consegue resistir a esta tentação? Esta época apela à gula e ao sentimento. Ter sentimentos, pelo menos a mim, dá-me fome. Por isso, é lógico que anda tudo ligado.
Depois, ainda em Outubro, começaram os anúncios. Promoções de todo o tipo, brinquedos com preço inflacionado e mensagens fofinhas começaram a saltar de todo o lado, principalmente da televisão.
Tenho a ideia de que antes isto só começava lá para meados de Novembro. Certamente a seguir ao Fiéis Defuntos. Quando eu era pequena, havia umas flores brancas no jardim de casa, muito cheirosas e farfalhudas, que abriam na altura dos Fiéis Defuntos. Era assim que eu sabia que era tempo de visitar o cemitério. Quando começavam as publicidades das bonequedas, estávamos próximos do Natal, ainda que eu não soubesse quão próximos.
Começava a cheirar a Natal quando se começava a desviar os sofás para colocar o pinheiro. Era natural (sei que agora não se pode) e colhido no monte ali ao lado. Não era preciso todo, só uma galinha bonita e com uma coroa, para enfeitar com uma estrela. No mesmo sítio encontrávamos musgo, bem verdinho e com volume. Forrávamos o chão com papel de jornal e alcatifas, para não estragar nada. O musgo passava a ser a Terra Santa, mais coisa menos coisa, e em cima desenhávamos caminhos de neve. Não sei se havia neve naquele lugar há mais de dois mil anos, mas em minha casa sempre houve. A neve não era neve, claro. Essa derrete, e não me lembro de passar um dia 25 com neve à porta. Por norma era farinha, que se roubava da cozinha. Farinha, por todo o lado, que dava um efeito nevado. Olhávamos para a obra prima – o presépio – com orgulho. Ficava com frio só de olhar. Os Reis Magos era mais pequeninos do que a Nossa Senhora, o São José e até do que o Menino Jesus. Não fazia mal, porque era uma questão de perspectiva. Eles vinham longe ainda, só chegavam dali a uns dias. Como toda a gente sabe, ao longe tudo parece pequenino. Tinha ainda um pastor, ovelhas e um castelo, que ficava igualmente enfarinhado. Desculpem. Nevados.
Não sei muito bem o que simboliza o Natal, às vezes. Para mim era a simplicidade de ter um pedaço de um pinheiro, com luzes, um amontoado de musgo com figurinhas castiças e farinha a fazer de neve. Não fazia mal não ser de compra, ou não ter um aspecto realista. Era a alegria de fazer isto com a família, de mobilizar todos os esforços para aqueles momentos. Embrulhar prendas às escondidas. Comer e rir. Jogar ao ‘par e pernão’ (que é uma espécie de jogo de apostas, dos que não faz mal, porque se ganham e perdem pinhões e nozes).
Agora já há, bem barata, neve em lata. Abana-se, e há neve por todo o lado. Branca e com textura. Tem que se ir retocando, porque como é a fazer de conta, vai perdendo características, até se resumir a um material borrachoso mirrado e meio amarelo. Isto não acontecia com a farinha. Essa era autêntica, nunca mudava. Ficava a fazer as vezes da neve até aos Reis. Mais tempo do que isso, se nós quiséssemos.
Não sei o que tem acontecido ao Natal, que já não me parece tão verdadeiro. Já não chega a farinha a fingir de neve, já se compra o presépio todo numa só peça, já não se reparam as luzes pisca-pisca fundidas com as suplentes que vêm na caixa, e tanto faz que haja cores iguais seguidas. Tanto faz porque o materialismo ganhou. Não há o decoro de celebrar as ocasiões devidamente, e pode ser Natal logo em Agosto.
Gostava que houvesse mais farinha a fazer de neve. A favor do que é simples. A favor do saber sorrir com tão pouco e mesmo assim não saber como se pode ser mais feliz.
Tânia Rei