Os mitos nascem de circunstâncias relevantes associadas a determinadas coincidências a que alguém atribui uma pretensa relação causa/efeito. A adaptação popular do relato e o acréscimo de alguns pormenores ficcionais faz o resto. A conveniência para justificar e sustentar determinada tese ou teoria, completa o quadro. Ilustro esta afirmação com uma lenda do tempo da Segunda Grande Guerra.
Timur-e-Lang (Timur o Coxo) que ficou conhecido como Tamerlão assumiu-se como descendente de Gengis Kahan, segundo alguns historiadores, apenas para legitimar o poder que exerceu sobre o largo império que conquistou. Com o objetivo de provar que efetivamente o guerreiro uzbeque tinha entre os seus antepassados o famoso conquistador mongol, o investigador soviético Mikahil Gerasimov solicitou autorização para exumar o cadáver, que lhe foi concedida, dizem que, diretamente por Estaline, em 1941. O mausuléu de Tamerlão, no Uzbequistão, está coberto por uma enorme laje em jade onde está gravada, a mando deste, a inscrição: “Quando eu ascender dos mortos, o mundo vai tremer”. Constou que dentro do respetivo caixão havia uma segunda frase, em árabe, dizendo: “Quem abrir o meu túmulo soltará um invasor mais terrível que eu!”. Poucos dias depois a URSS era invadida pelas tropas hitlerianas dando início à tremenda operação Barbarossa que dizimou milhões de russos.
Um segundo facto veio consolidar a lenda da “maldição”: na véspera da batalha de Estalinegrado, que marcou a inversão no curso do conflito, o esqueleto do guerreiro medieval foi devolvido à sua tumba, observando um rigoro ritual muçulmano. Obviamente que é fácil tentar associar estes factos entre si e é isso que a superstição popular faz. Mas cumpre olhar para todos estes fenómenos com os olhos da razão. A decisão de invadir o túmulo e abrir o caixão foi tomada e executada em alguns dias. Não é razoável sustentar que a invasão, que começou a ser planeada um ano antes, possa estar de alguma forma ligada a tal acontecimento. É igualmente ridículo sustentar que foi a devolução dos restos mortais que inverteu a sorte da invasão germânica. Não é displicente, contudo, aceitar que sabendo das crenças supersticiosas de muitos dos combatentes, a chefia militar, sabendo da sua superioridade estratégica, tenha feito coincidir o re-enterro com as vésperas do contra-ataque, para elevar o moral das tropas. Obviamente que, depois, não foi possível conter a disseminação da crença, mas nada mais há do que isso, coincidência de datas, ocasional, a primeira, provavelmente, forçada, a segunda.
O mesmo se passa, no meu entendimento, com as chamadas profecias do Bandarra que, segundo o que nos foi ensinado na escola, prenunciavam o regresso de D. Sebastião. Uma análise racional aos factos, facilmente releva a incongruência de tal teoria. Gonçalo Annes Bandarra morreu em Trancoso, em 1556, tinha o jovem príncipe, dois anos de idade. Ou seja, quando as trovas foram feitas e divulgadas, ainda não tinha nascido o rei que haveria de sucumbir em Alcácer Quibir. Como poderia o sapateiro de Trancoso apelar à vinda em qualquer manhã de nevoeiro de alguém que ainda nem existia? Mesmo quem possa acreditar nos poderes proféticos do artesão não pode defender tal teoria porque se assim fosse, haveria necessidade de explicar o rotundo falhanço da “previsão” pois é da história que nenhum cavaleiro salvador chegou, nem em manhã de nevoeiro, nem em tarde de nebilina! O anúncio de Gonçalo Annes referia-se não a um chefe militar, mas à ansiada vinda do Messias que os judeus esperavam e que, por essa altura, agitou a comunidade marrana portuguesa e espanhola. Este espírito messiânico varreu a Peninsula Ibérica e foi, de alguma forma, fomentada por D. João III, que recebeu o suposto mensageiro e percursor do Messias, David Reuveni, a quem inclusivamente prometeu ajuda e fazer uma pausa na perseguição aos marranos. Uma leitura atenta das estrofes em questão, mostra claramente que “aquele” que se esperava e anunciava seria “um pastor valente” ... “com huma limgua sagaz”, mais conformado a um líder espiritual do que a um libertador comandante militar. Aliás, o Santo Ofício, que não dormia em serviço, disso se convenceu pois prendeu e sancionou o poeta e proibiu a divulgação da obra.
Obviamente que a posterior “adaptação” serviu os interesses da Casa de Bragança e, seguramente, não seria a comunidade marrana que viria, naquela altura e naquelas circunstâncias, reclamar o sentido diferente e verdadeiro da coletânea de trovas que assim “passaram à história”.