O caso foi por demais noticiado, comentado e glosado e não é para menos. Ou não fosse protagonista Marcelo de Sousa, o inefável Presidente da República Portuguesa, sobejamente reconhecido por falar demais do que deve, ou do que o cargo que ocupa lhe recomenda. Virtude ou defeito, vá- -se lá saber. Pior um tanto: com o agravante de muitas vezes o fazer a despropósito. Desta vez, foi num evento promovido pelo jornal Público sobre literacia mediática que o actual Chefe de Estado, a meio da sua intervenção, entendeu dizer o que a seguir transcrevo fielmente dos jornais para mais correcta apreciação: “Dizia muitas vezes a um governante com o qual partilhei quase oito anos e meio de experiência inesquecível: um dia reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos”. Escusado será dizer que o governante de que se trata, mesmo que Marcelo de Sousa o não cite directamente, é o ex-primeiro ministro António Costa com quem publicamente reconhece, talvez não tenha sido essa a sua intenção, que partilhou poderes, promiscuamente, só assim se pode entender, acrescentando que ambos terão sido felizes, ainda que não o soubessem. Tempos que, isso Marcelo de Sousa não refere, não foram os melhores para muitos portugueses. Como não poderia deixar de ser, os jornalistas que tal ouviram e que, como se sabe, são danados por bocas deste tipo proferidas por gente ilustre, de imediato trataram de confrontar António Costa, o agora Presidente do Conselho da Europa, com as inusitadas afirmações de Marcelo de Sousa. Todavia, António Costa limitou-se a responder: “Eu tendo a ser feliz, sempre”. É bom de ver que sim. Outra coisa nem seria de esperar porque António Costa, sobretudo agora que ascendeu a patamar mais elevado da política mundial, está mais comedido no que diz e que pensa duas, ou mais vezes antes de o dizer. Da felicidade dele só ele saberá, ainda assim. Será muita, por certo, ainda que nem todas as lembranças dos tempos em que coabitou com Marcelo de Sousa sejam boas. Ninguém duvida, porém, que quer Marcelo de Sousa quer a António Costa, muito se divertiram durante os tais quase oito anos e meio em que partilharam a estonteante governança do desafortunado Portugal, não lhes faltando, só por isso, motivos para serem felizes. Como eles, muitos outros políticos haverá em Portugal, nos inúmeros cargos e funções que ocupam, com razões de sobra para pessoalmente se sentirem alegres e contentes. Gente que até se dá ao desfrute de verter lágrimas de circunstância, salvaguardando a sua felicidade política, em situações muito especiais, como quando deparam com os sem abrigo das maiores cidades, quando vergonhosos indicadores de pobreza vêm a público, quando jovens qualificados se despedem da família para irem trabalhar para outras paragens, quando rebentam casos corrupção que, quer queiram quer não, os deveriam importunar, quando gravidas correm seca e meca para encontrar um sítio onde parir, ou quando o INEM falha dramaticamente, como aconteceu recentemente. Para não citar, ainda que nunca devam deixar de ser evocados para que tais tragédias se não repitam, os incêndios florestais que causaram centenas de mortos, e lavaram muitos políticos a abraçar e a choramingar no ombro dos infelizes sobreviventes. Não deixa de ser estranho que Marcelo de Sousa venha agora dizer que afinal não vai sentir saudades de ter sido Presidente da República, desses tempos em que ainda há pouco disse ter sido feliz sem o saber e que jamais falará de política nessa nova fase da sua vida. Será que tem estado, este tempo todo, a tentar esgotar as palavras? Também não deixa de ser surpreendente que já esteja a despedir-se quando ainda tem pela frente mais de um ano de mandato, uma vez que, formalmente, só deixará de ser Presidente da República em Março de 2026. Mas ainda bem. Os eleitores têm, assim sendo, mais tempo para pensar num Presidente da República, patriota, autodisciplinado e que exerça o cargo com sobriedade, dignidade e justeza. Um Presidente que, como o próprio Marcelo de Sousa afirmou no seu primeiro discurso de tomada de posse, não queira ser mais do que a Constituição permite e não aceite ser menos do que a Constituição impõe. Um Presidente estranho à perniciosa hegemonia partidária e política e longe das novelas televisivas. Trate-se de um almirante ou de soldado raso, de um padre ou de um bispo, porque não? Um Presidente, acima de tudo, politicamente feliz e sem lágrimas. Um Presidente que se por força das circunstâncias tiver que chorar, as suas lágrimas tenham a mesma composição química e emocional que as do povo sofredor