Os Fiadeiros dos Santos em Argozelo

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“O nobre Judas mandou fazer uma coleta, recolhendo cerca de dez mil dracmas, que enviou a Jerusalém para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados, obra digna e santa, inspirada na crença na ressurreição, porque, se não esperasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles” (II Macabeus,12, 43-44).

Será, pois, esta uma das passagens das Sagradas Escrituras na qual se fundamentava o povo judeu de Argozelo, num passado mais ou menos longínquo, para a celebração dos chamados “fiadeiros”, em honra dos seus mortos. Na verdade, é uma tradição que, apesar das influências celtas e cristãs, ainda hoje se cumpre, como preceito religioso, no primeiro dia de novembro.

A data específica para a entrada no ano novo celta – o Shamhain – foi estabelecida a quarenta dias após a passagem do equinócio de setembro. Foi uma iniciativa dos druidas, os líderes encarregados das funções jurídicas e filosóficas, do aconselhamento, do ensino dentro da comunidade. Os rituais justificavam-se pela crença na continuação da existência depois da morte. As reuniões realizavam-se nos lares, em ajuntamentos familiares, e não nos cemitérios, no primeiro dia de novembro, para homenagear e evocar os mortos, tornando viva a sua presença neste dia festivo.

As celebrações que restam hoje em dia apenas mostram a sua faceta cristã; porém, a celta e a judaica, estando ocultas, não deixam de continuar bem presentes.  Desde logo, a data determinada pela Igreja para a celebração dos Santos, já antes estava assinalada no calendário das anteriores culturas e dos respetivos povos: o Shamhain celta e o Rosh Hashaná, o Ano Novo Judaico e Dia do Julgamento, transferido do mês de setembro para o primeiro de novembro pelos sefarditas para fazê-lo coincidir com o calendário cristão. O fiadeiro acaba por ser o convívio dos moradores de um bairro, à volta de uma grande fogueira em cujo braseiro se assam carnes e castanhas partilhadas entre todos.

São em número aproximado de quinze as fogueiras que correspondem a outros tantos bairros e convívios, mais ou menos participados, consoante o número variável de moradores (e, eventualmente, também convidados). Aliás, o termo “fiadeiro” usado para este convívio também se aplica, genericamente, às fogueiras que, segundo a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, “se acendem num terreiro e à volta das quais se reúnem as mulheres, nas noites de setembro a novembro, para fiar e cantar e rezar”. Podem-se acrescentar outras finalidades, como conversar, contar histórias, falar das vidas alheias…

Porém, os fiadeiros dos Santos em Argozelo revestem-se de performances muito próprias. Citando uma grande entusiasta desta tradição de Argozelo, Patrícia Cheio, ao escurecer desse dia, os moradores dos bairros começam a organizar o ritual; acendem-se as fogueiras e põem-se as mesas e preparam-se as carnes, “ao gosto das pessoas de cada bairro”. Hoje em dia, a própria Junta de Freguesia se empenha na manutenção dos fiadeiros, contribuindo com a oferta de uma quantidade de castanhas suficiente para assar e satisfazer as necessidades de cada bairro.

A homenagem aos mortos materializa-se em dois rituais. Um deles é o toque dos sinos, durante todo o dia e de forma livre e espontânea: “quem quiser sobe à torre da igreja que está sempre aberta, dobrar os sinos, em honra dos seus entes queridos que já lá estão”.

Carregado de uma simbologia mais profunda são as pancadas fortes dadas nos troncos incandescentes da fogueira por certos entusiastas e executantes da tradição. Para o efeito, usam as chamadas “mocas” – paus compridos, sendo que uma extremidade é uma grossa raiz, com que batem nas brasas. O ato faz atear as chamas que lançam falmegas que se levantam no ar. No entendimento do povo, são as almas dos mortos que ali se apresentam perante o povo e que sobem ao céu. Nesta altura, o “celebrante” do ritual da moca proclama: “Alminhas para o céu!”. Vai então desfiando os nomes dos familiares e amigos “que já lá estão”. Cada batida, seu nome: “É para o tio Cheio, pelo tio Armando…”.

Elisa Brás, outra grande animadora dos rituais, explica: “antigamente, juntava-se a mocidade para correr a vila com as mocas. Passavam por todas as fogueiras dos bairros. Eu mesma sempre me juntava ao grupo e rezávamos pelos mortos, por todos quantos lá estavam. Agora, como eu quero guardar a tradição, continuo a fazer o mesmo, sozinha. Sou a única mulher que cumpre esta tradição: correr o povo, todos os bairros e as fogueiras todas”.

Efetivamente, em cada fogueira, Elisa Brás aplica várias pancadas em homenagem aos moradores falecidos daquele quarteirão: “alminhas para o céu! Dai-lhe, Senhor, o eterno descanso, a todos quantos lá estão, em nome do Pai…”.

Em Argozelo, assim se homenageiam os mortos que descem ao lugar de onde partiram e, pela força das chamas, ateadas pelas pancadas das mocas, sobem ao céu. De novo, ciclicamente, em cada primeiro de novembro.

António Pinelo Tiza