O RAPAZ QUE APANHAVA ENGUIAS COM A MÃO

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Esverdeadas, colubriformes, masjestosas, nadavam, normalmente em águas pouco agitadas. Tempos houve em que as enguias apareciam entre as demais espécies piscícolas que habitavam os cursos de água nordestinos. Com a construção das barragens no Douro Nacional acabaram-se. Já não há enguias. Da sua pesca resta a lembrança.
Havia várias formas de as pescar.
Na mais frequente usava-se um garfo comprido, com dentes finos, redondos e espessos. Nem sempre resultava pois como era normal andarem em zonas com muito lodo, faltava terreno firme por baixo e com alguma frequência se escapavam, apenas com pequenos arranhões.
Mas também havia quem as apanhasse com a mão, como o Fernando, que para isso tinha a necessária  mestria e engenho.
Para além das águas serenas correntes, chegavam mesmo a aparecer em poços e noras para onde caíam e onde ficavam aprisionadas. Na minha aldeia diziam à boca cheia e com ar de entendidos que isso acontecia porque as enguias saiam à noite para pastar. Soube mais tarde que como eram muito resistentes e aguentavam muito tempo fora de água a humidade do orvalho era suficiente para lhes permitir viagens noturnas, que às vezes lhes eram fatais, pelo meio da verdura dos campos.
Quando se esvaziavam os poços de rega para limpeza era vulgar no meio do lodo aparecerem o apetecido petisco. Mas era na ribeira da Vilariça que o Fernando as pescava. Revejo-o, de calças arregaçadas até às virilhas, caminhando lentamente como um felino numa poça que a ribeira fizera por baixo de umas raízes de choupo, nas Olgas, a seguir à ponte velha. Era muita a sabedoria e experiência que na sua dúzia de anos de existência já tinha, na arte de bem apanhar os murenídeos que se atreviam a aparecer-lhe pela frente.
Não usava garfo. Uma folha de figueira, dizia, era mais eficaz. Desde que conseguisse apanhá-la a jeito. Para isso não podia ser sobre o lodo onde ela facilmente se enterrava e depois nunca mais lhe punha a vista em cima. Tinha de a empurrar para uma pequena cascalheira onde a água era mais limpa, onde a via melhor e onde, se fosse necessário, a podia apertar contra areia grossa do chão. Esse era o segredo e essa era a fina arte do Fernando. Encaminhá-la para a água corrente sem a espantar. Com paciência. Muita paciência. O olhar fixo nos seus movimentos serpenteantes e a mão pronta a cair-lhe em cima, quando chegasse o momento. A superfície áspera da folha da figueira servia para se agarrar à pele escorregadia do animal. Cravava-lhe todos os pequenos picos vegetais e já não a largava. Para isso tinha de a apanhar no meio do lombo e com um gesto único. Se lhe tocasse antes, em qualquer uma das partes, ela sentia a ameaça, fugia para um dos buracos por baixo das raízes ou enterrava-se no lodo e, pronto, não havia nada a fazer. Cada passo que dava servindo para a encaminhar para o local pretendido tinha de ser suficientemente calmo e suave para a não espantar.
Foram várias as vezes que o vi erguer o braço com o troféu a espernear na mão. Muitas se lhe escaparam, é certo, mas o saldo era-lhe largamente favorável.

Num jantar de velhos amigos e colegas de curso estava um jovem que entrara há pouco para a polícia judiciária. Descrevia, deslumbrado, fruto da novidade e do entusiasmo, sem concretizar, claro, a forma como alguma investigação tinha de ser conduzida, nomeadamente os avanços lentos, os recuos estratégicos e a paciência necessária para obter as provas absolutamente necessárias ao sucesso das operações. Ouvimo-lo interessados.
– Tenho de te apresentar o Fernando – disse-lhe eu. 
– Quem é o Fernando? –  perguntou-me ele.
– Um rapaz que apanhava enguias com a mão –  concluí, em jeito de despedida.

José Mário Leite