O passado que nos faz

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A grande história, a dos livros, diz-nos como chegámos até aqui por um longo caminho de construções, destruições, concórdias, discórdias, diplomacias, conflitos, abundâncias, privações, doações, pilhagens, calmarias, convulsões, êxodos, invasões, indulgências, opressões, povoamentos, extermínios, liberdades, servidões…. É que somos o produto de todos esses movimentos, de todos mesmo, e quer os vejamos com sinal positivo ou negativo eles criaram esta realidade que neste momento é a nossa. A barbaridade e a civilização estão mescladas em nós de tal maneira que não poderíamos renegar aquela sem matar esta. Se estamos aqui, agora, tanto o devemos aos massacres de átila como às lições de jesus. Há uns anos, seguindo uma moda que estava muito a dar, jorge sampaio foi pedir desculpa a lula da silva por termos colonizado o brasil. Já nem ligo ao absurdo de nós, os portugas atuais, sentirmos culpa por algo que não fizemos. Já ponho de lado que eles também deviam vir cá fazer-nos vénias por termos levado a cultura europeia ao coração da selva, dando o empurrão inicial àquele grande país. Não se podiam exigir tais subtilezas ao lula, que é inculto. Mas o nosso tinha a obrigação de saber que se não fosse a descoberta, a colonização e tudo o que se seguiu nem ele nem o brasileiro existiriam, um para se fingir pesaroso e o outro ressentido. A jogada de pedro alvares cabral no tabuleiro do globo, acidental ou não, criou de novo o brasil. Mas também recriou portugal, redesenhou o mundo inteiro e tudo o que passou a acontecer e a existir nele até aos nossos dias. Porque as ações de um ser humano podem ser comparadas às de uma peça num tabuleiro de xadrez. Cada um dos seus movimentos anula outros que naquele momento eram possíveis, altera a posição relativa e as possibilidades dela própria e das restantes peças, condiciona os inúmeros lances que poderão depois ser efetuados, isto é, influencia todo o jogo até ao final. E não é só a história com h grande que conta para estas contas. Paralelamente a ela, corre ignorada uma outra feita de episódios particulares em número infinito, levados a cabo por pessoas anónimas sem cujas existências esta realidade que agora temos não seria possível. O que somos foi-nos igualmente legado por esse passado obscuro. Um dos meus avôs, homem casado e com filhos, cedeu uma vez aos instintos e “abusou” de uma rapariga, um movimento brusco na superfície do tabuleiro da vida que os marcou para sempre a eles e às famílias e fez com que eu esteja aqui a escrever isto. Menos evidente, contudo real, é que mudou também o destino da aldeia, do concelho, do distrito, do país, do globo. As ações das pessoas são pedradas num charco cujas ondas de energia repercutem em todas as partículas da água que ele contém, afetando-as de alguma forma. Têm impacto sobre quem as faz, os outros seres e a natureza. Depois de feitas nada volta a ser igual ao que era. Se um único dos acontecimentos que nos precederam tivesse falhado o planeta seria diferente e a humanidade outra que não esta. Somos o resultado de tudo o que está para trás, o último elo de uma corrente invisível que nos sustém e não seríamos capazes de cortar. O passado está entranhado naquilo que são os nossos corpos, ideias, gostos, desejos, gestos, hábitos, frases. Muitas vezes, no plano coletivo (como no pessoal), ele mostra-nos coisas desconfortáveis. Não há passados sem nódoas. Mas renegá-las seria renegar ao mesmo tempo aquilo que nos parece honesto, justo, belo, bom. São tomás de aquino dizia que nem deus consegue fazer com que aquilo que aconteceu não tenha acontecido. Ora o que aconteceu é o que nos alimenta e mantém de pé, por isso nem faz sentido querer que não tenha acontecido. Faz sentido, isso sim, fazer o melhor presente possível, e através dele o futuro. Com que cara julgaria eu a fraqueza daqueles meus dois antepassados se foi ela mesma que me fez existir para poder julgar? Seria possível a um mestiço deitar fora metade dos seus genes? Os imitadores que andam a derrubar estátuas de esclavagistas repetem o mal que veem no passado combatendo violência com violência e mostrando uma vez mais que a ignorância pode ser atrevida. Mas as suas embirrações significam autonegação, autorrejeição, desejo de apagar a memória em vez de a compreender. É que sem a escravatura não existiriam para derrubar.

Eduardo Pires