“Os livros são o alimento da juventude”, Cícero.
“A leitura engrandece a alma”, Voltaire.
Esta sucinta reflexão é motivada pela efeméride comemorada no dia 23 de abril, assinalando-se o Dia Mundial do Livro e dos Diretos de Autor.
As palavras, sempre atuais, dos mestres citados nas epígrafes encerram o desígnio deste texto, isto é, o encómio da leitura. No entanto, convém contextualizar e recentrar a questão nos tempos hodiernos.
Começo por uma interrogação, que razões nos levam, no presente, a ler? As causas são inúmeras, para não ser exaustivo, elenco apenas: lemos, fundamentalmente, por uma necessidade de libertação e para expressar o nosso inconformismo que não deve aceitar ficar aprisionado dentro dos limites de ideários pré-estabelecidos e de um vocabulário primário. Este progressivamente cada vez mais reduzido por razões demagógicas dos aparelhos de condicionamento das mentalidades e dos media, que se têm esforçado por o afunilar, reduzindo-o a uma elementaridade básica, que não se coaduna com as reais necessidades dos seres pensantes.
Reconheço, a contragosto, que as intervenções que se fazem, coadjuvadas pela propaganda, abrem caminho à custa do abandono da literatura no ensino, por um lado, e pela sua desvalorização nos media, por outro. Por vezes, fico com a sensação de que para os poderes instituídos, tanto a nível nacional como internacional, patentes e latentes, como nos tempos da ditadura salazarista, de má memória, basta que as pessoas sejam capazes de ler, escrever e contar. Estes intentos fazem eco das palavras, infelizmente não anacrónicas, de D. Miguel Forjaz, da obra “Felizmente Há luar!” de Luís Sttau Monteiro: “sonho com um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor.” Em suma, estas atuações mais não pretendem do que suprimir toda a complexidade, limitando escolhas e tranquilizando espíritos, com o fito de instituir o conformismo, a uniformização e a resignação, de forma acéfala, ao paradigma que se impõe.
Perante este cenário caótico e disfórico, só nos resta uma atitude digna de seres racionais, encarar o livro como um objeto falante, como algo que nos põe a pensar, pois já Platão afirmava que: “o livro é um mestre que fala, mas que não responde”. Essa tarefa cabe, inequivocamente, ao leitor, mas pensar é a coisa mais difícil que o homem pode fazer, como se infere dos versos de Pessoa/Caeiro: “Pensar incomoda como andar à chuva / Quando o vento cresce e parece que chove mais”. O livro é, sem dúvida, um objeto para pensar. Se o livro não cumprir esse desiderato, quem realizará esse encargo? A televisão? Não me parece. Esta, respondendo a interesses ínvios, está apostada em criar cidadãos acríticos que consumam a panóplia de programas, bens e serviços publicitados até à extenuação e, não raras vezes, à náusea. A este propósito, recordo os versos: “putos que crescem sem se ver / basta pô-los em frente à televisão”, da música, de 1992, “Chuva dissolvente”, dos Xutos & Pontapés, que já, na derradeira década do século XX, alertava para as perniciosidades de uma educação baseada nos curricula da “caixa mágica”, assumindo-se, no presente, como uma enxurrada de irrealidade extraordinária.
Voltando ao livro e às razões da leitura, pergunto por que devemos ler? Lemos para ter lucidez e utilizar esse conhecimento em prol dos outros, isto é, da sociedade.
Assim sendo, impõe-se nova questão. Que relação devemos ter com a leitura? Do rol de réplicas possíveis - cf. Daniel Pennac Como um romance - apresenta-se esta. A relação com o objeto livro deve ser violenta. Devemos encarar a leitura como uma dura peleja entre as ideias do livro/autor e o pensamento do leitor, sendo essa pugna renovada a cada nova leitura. O mesmo se infere das palavras de Italo Calvino, em Porquê Ler os Clássicos: “Interessa-me muito tudo o que Jean-Jacques Rousseau pensa e faz, mas tudo me inspira um irresistível desejo de contradizê-lo, de criticá-lo, de brigar com ele”. Da contenda podemos, por vezes, sair a coxear e a ver menos, isto é, mais confusos; mas, na maioria das vezes, ficamos a enxergar mais e de forma diferente, ou seja, os nossos horizontes podem abrir-se até ao infinito.
Sintetizando, devemos cultivar a insubordinação do pensamento e adotar como estandarte/divisa a insolente liberdade de pensar. Só, assim, escaparemos à pesada sentença de Eugénio de Andrade, presente nestes versos, escritos em 1948, mas que se mantêm atuais, pese embora o caminho percorrido, em 2018: “Passamos pelas coisas sem as ver, / gastos, como animais envelhecidos: / se alguém chama por nós não respondemos, / se alguém nos pede amor não estremecemos, / como frutos de sombra sem sabor, / vamos caindo ao chão, apodrecidos”.
Termino reiterando não só a importância da leitura, mas, sobretudo, uma certa maneira de ler, encarada como um combate, que nos permite conhecer as ideias que o livro explana, honrando, desta forma, o autor e a obra; porque os livros são, indubitavelmente, os objetos mais propícios à autognose, como asseverou Marguerite Yourcenar, escritora belga, primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras, em 1980, no livro Memórias de Adriano: “o verdadeiro lugar do nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente a si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros. Num grau inferior, as escolas”.
O valor da leitura e dos livros é, também, destacado por Italo Calvino, na obra citada, ao afirmar: “A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma opção; mas as opções que contam são as que se verificam fora e depois de todas as escolas”.
Epilogando, a melhor forma de celebrar o Dia Mundial do Livro e dos Diretos de Autor é, sem dúvida, ler as obras e questionar as ideias nelas plasmadas. Assim, os livros granjearão vida e os leitores concretizarão a autognose almejada, pois, como escreveu Stéphane Mallarmé, em 1897, “Todo o Pensamento produz um Lance de Dados”.