Mais uma vez, quando a tarde alaranjando se despede e desvanece, Júlio Manso e Tomé Guerreiro partilham um copo de tinto, um naco de queijo terrincho, uma lasca de presunto e um carolo de centeio ainda quente.
— As notícias são boas, ti Júlio?
— Podiam ser melhores. Veja só este título onde um deputado centrista reclama, como sendo grande desperdício, os beijinhos no dói-dói.
— Desperdício? Só de uma enorme ignorância poderia sair tal dislate! Não terá, seguramente, propriedades terapêuticas cientificamente provadas e aprovadas, mas quando nada mais se pode fazer, não há nada como os beijinhos no dói-doi. A dor não é só física e a capacidade de a suportar aumenta na exata proporção do carinho com que os ósculos são depositados.
— O meu amigo hoje está muito poético!
— Sabe o que realmente me dói? É a insensibilidade de alguns políticos a quem, de forma insistente e irresponsável, tudo lhes serve para arremessarem aos opositores!
— Ó ti’Tomé, vossemecê não poupa nas palavras.
— Não me resigno perante tanta demagogia. É claro, certo e sabido que os abraços e os afetos não vão resolver os gravíssimos problemas, nem apagam a tragédia que atingiram as gentes de Pedrógão e arredores. Contudo, para o que já não tem remédio e para o que, tendo, não tem solução imediata, mais nada há a fazer, de imediato, que mostrar e exercer a solidariedade que o Presidente da República veio trazer.
— Olhe que eu não diria melhor! E o que me diz desta notícia aqui logo a seguir sobre a candidatura portuguesa para sede da Agência Europeia do Medicamento? Então não é que, mais uma vez querem puxar mais esta para a capital? Mas os do Porto já vieram dizer que não pode ser assim!
— Pois vieram. Mas mais valia ficarem calados.
— Essa agora! Ainda há bem pouco se abespinhava todo com o centralismo lisboeta e agora acha bem que continuem com essa mania que é já um vício?
— Abespinhava e abespinho. Nada é mais necessário neste país, com o interior tão desertificado, do que a descentralização.
— Pois, e então?
— Então, é que a altura não é esta.
— Não? E porque não?
— Atente bem nisto. A vinda da agência para Portugal não é, nem de longe nem de perto, um dado adquirido. A probabilidade de sermos contemplados com tal infraestrutura é reduzida. Só por isso deveríamos juntar-nos todos à volta da melhor proposta que fosse possível apresentar. A divisão só nos vai prejudicar. Imagine agora que a gente do Porto leva a sua avante e que a candidatura portuguesa segue baseada numa localização da Invicta. A ida da agência para outro país será um trunfo enorme, que bem dispensávamos, para os defensores do centralismo. Poderão, a partir de agora, alegar, que a “cegueira” descentralizadora conduziu à derrota e, mesmo que o não possam provar, nada os impede de especular que uma proposta melhor teria outra chance de ter sido vitoriosa. Por outro lado vão martelar-nos, daqui em diante, que a insistência regionalista prejudica o país.
— Não deixa de ter alguma razão. Mas diga-me lá, já que parece estar tão bem informado. A proposta de Lisboa é melhor?
— Não tenha dúvida que é. E, ironicamente, por causa do centralismo governamental que tem instalado tudo quanto é sede de poder económico e técnico à beira do Tejo. É lá que está o Infarmed e as principais empresas farmacêuticas nacionais e as delegações internacionais. Também é ali que existe um forte cluster científico e tecnológico público e privado. Para além de possuirem a necessária e exigível oferta de ensino internacional, a todos os níveis, para os milhares de funcionários que acompanharão a deslocalização da Agência.
– Estamos mais uma vez penalizados. E desta vez, duplamente.
– Tem toda a razão. Mas olhe que a necessária regionalização é muito mais do que isto. Mudar o que quer que seja, de Lisboa para o Porto, não encaixa, propriamente, no conceito que tenho de descentralização!