Na semana passada tive notícias da Becas.
A Becas é uma gata com padrão tartaruga, de olhos verdes, que eu ajudei a salvar. Tinha a bicha algum meio ano quando a minha vizinha do lado foi passar uns dias fora e a deixou sozinha em casa. Sem água e sem comida, já num desespero, era ver a gatinha na varanda, de boca aberta com a sede e a aproximar-se perigosamente do beiral do segundo andar, à procura de uma saída. Chamámos os bombeiros, mas ela assustou-se e foi-se empoleirar num reclame luminoso, onde não era seguro ir buscá-la. Passei uma madrugada de calor na minha janela, a tentar convencer a Becas a vir ter comigo. Mas ela tinha medo, coitadinha. No dia seguinte, lá se encheu de coragem e entrou dentro de um dos apartamentos, onde foi possível, finalmente, deitar-lhe a mão para a pôr em segurança. Bravo, Becas!
A Becas foi adoptada pelo casal do primeiro andar. Quando "fugia" e passeava pelo prédio, via-a muitas vezes. Ou me preparava emboscadas nas escadas, ou me acompanhava até à porta. Entrava como um foguete, e metia-se debaixo da cama. Brincava com o que lhe aparecia, até que era hora de a devolver aos donos, antes que ficassem preocupados. Quando ouvia ecoar nos corredores "Becas! Onde estás?", punha uma expressão de "está na hora de te deixar", e lá a conseguia convencer a terminar a visita. Acho que era a maneira dela demonstrar apreço por ter participado no seu salvamento.
Soube na semana passada que a gata Becas morreu de leucemia. Não sabia dela há três anos, apesar de me lembrar bem das cabriolas e da missão de salvamento, que mobilizou, numa determinada altura, toda a minha rua. Fiquei triste, mas pelo menos aliviada por saber que a curta vida que teve foi feliz e com carinho. Mesmo quando eu deixei de fazer parte da vida dela.
Esta era uma das raras estórias que me teria bastado saber o que já sabia. Por ser triste, provavelmente. Porque, de resto, gosto sempre de ver respondida a pergunta: "E depois, o que aconteceu?". Nos livros, filmes e séries de televisão, posso até compreender que haja um final, mas nunca aceitar. Se gosto das personagens, do enredo, do que se está a passar, preciso de saber mais. Para sempre, se possível! A certo ponto, parece que somos cuspidos da estória, e ficámos à margem de algo do qual já fizemos parte.
É estranho quando deixámos para trás uma estória. Até mesmo quando não gostamos dela. Fizemos parte de um caminho juntos, e, depois, numa qualquer encruzilhada, seguem-se caminhos opostos. De uma estória passam a ser duas, ou três, ou quatro. Mas já não estamos todos na mesma estória. Isso, devo admitir, deixa um amargo de boca. E agora, o que vamos fazer sem uma estória que já foi nossa mas onde já não estamos? A estória continua sem nós, e nós sem ela, sem saber muito bem o que fica por dizer ou saber. É estranho quando percebemos que há um curso que pode seguir sem nós, e que vai mesmo seguir, sem qualquer pudor e, muito menos, sem a nosso aval ou opinião.
Se fosse hoje, antes de ter mudado de casa e de ter sido cuspida daquela estória, tinha chamado mais vezes a Becas para brincar debaixo da minha cama com as meias sujas e o que por lá encontrava. Porque essa foi uma estória da qual fiz parte e que me fez feliz.E há estórias que terminam para nunca mais voltar.
O fim da estória
Tânia Rei