O ensaio

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Há momentos em que a reflexão nos coloca num processo metacognitivo ao qual corresponde um questionamento do “eu filosófico” e da implicação do mesmo no devir do tempo. Já ando por cá tempo suficiente para constatar que os registos de língua sofrem variações geracionais e o próprio sotaque altera-se de acordo com fatores circunstanciais e variáveis diversas. Ora se a linguagem condiciona o modo como nos relacionamos, e esta modifica o pensamento, numa era em que a palavra adquiriu particular relevância, seria de todo conveniente que cada um cuidasse o modo como se expressa e, sobretudo, o que verbaliza, “pois a boca fala do que está cheio o coração.” (Mateus 12:34) já diz o sagrado livro.

Como em tudo, o ser humano desvaloriza o que se torna massificado. Talvez por isso, se desvalorizem as palavras e o que expressam, se vejam imagens mas não se observam e as ocorrências secundarizam-se a menos que, no imediato, nos condicionem. Dado que valores como a educação, o civismo e a intervenção social só apresentam efeitos a médio e longo prazo, numa era de imediatismo são, por isso, considerados obsoletos. Talvez, por isso, o déficit democrático esteja tão alto e a passividade face à conjuntura seja o que se vê. Como certo há apenas a contradição dos tempos e discursos que se sobrepõem dourando uma realidade potencialmente perigosa, porque, se é verdade que as sociedades evoluem em espiral havendo pontos que replicam os anteriores, pode estar a iniciar-se um novo ciclo de contração, não só em termos económicos, mas em valores e de organização social. Os sinais são preocupantes para quem viveu na ditadura e conhece este modelo democrático construído ao longo de quarenta e cinco anos. Nunca como hoje as liberdades e garantias foram tão ameaçadas e os exemplos repetem-se sistemática e continuamente.

Quando nas redes sociais se multiplicava a notícia de que a máquina fiscal tinha ido para as autoestradas cobrar dívidas, pensei que se tratasse de uma fake news. Quando os noticiários fizeram a cobertura, tomei consciência de que algo está a mudar na relação do Estado com o cidadão, sob a batuta da esquerda. Por uma dívida de centenas de euros confiscam-se os meios de trabalho a um pobre, mas, ao mesmo tempo, perdoam-se milhões a quem tem milhares de milhões e nem sequer se questiona a dignidade da pessoa que é exposta na via pública: está dado o primeiro passo para se voltar aos julgamentos e aos açoites na praça pública. Com menos alarido mas a mesma eficiência também a Segurança Social tem mandado cartas com o mesmo objetivo e as mesmas ameaças.

A promiscuidade entre o Estado e os grandes interesses tipifica-se no papel que a Autoridade Tributária exerce na cobrança coerciva das portagens. Sendo as autoestradas concessionadas a particulares, como pode um organismo estatal estar ao serviço de interesses privados? Por outro lado, não gostariam as pequenas e médias empresas de poder aceder ao mesmo mecanismo para arrecadar dividendos que andam meses e anos sem serem cobrados e alguns nunca chegam a ser resolvidos?

Também a sindicância à Ordem dos Enfermeiros, anunciada previamente num jornal nacional, para além de ser caso inédito na democracia, é um sinal claro de que algo está a mudar no panorama nacional e até onde o Estado está disposto a imiscuir-se em campos que até agora tinha respeitado. A sete meses das eleições para a Ordem, esta exposição mediática não será inócua nem as declarações da atual ministra da saúde permitem ver neste enredo um ato irrefletido ou a determinação em averiguar acautelando o princípio das relações institucionais e a presunção da inocência, até prova em contrário.

Assim, quando Marcelo considerou haver uma grande probabilidade de a direita entrar em crise profunda nos próximos anos, independentemente das razões subjacentes, e das críticas que se seguiram, mais não fez do que alertar para o fim do multipartidarismo e para a necessidade de se refletir sobre o rumo que a democracia está a seguir em tempos de popularismos e de derivas eleitoralistas, onde começa a ser cada vez menos provável que se possa falar de “partidos do arco do poder”. Na sua crónica de 14 de junho, Vitor Raínho, no jornal Sol, adverte para a vaga proibicionista que está a tomar conta do país, não sem deixar de questionar onde se encontra agora a geração do “é proibido proibir”, o que torna este tema ainda mais relevante e vê sinais de um retrocesso ao Estado Novo e às práticas do mesmo.

Bem podem os Berardos sorrir nas comissões parlamentares, os Espírito Santo fazer vidas de luxo porque nós, povo, continuaremos por aqui deslumbrados com o circo e à espera do pão enquanto permitimos que o ensaio continue até que os grilhões e a mordaça nos sejam colocados.  

Raúl Gomes