Entramos sem grande entusiasmo no ano de 2020. Uma nova década e o tempo a limitar-nos o tempo da nossa precária existência. Cai uma chuva miudinha e o vento sopra dos lados da Sanábria onde habitam todos os frios e os seculares nevões. Sinto as mãos geladas e nem o ano novo me traz a novidade, o fulgor de puder dizer aos meus vizinhos:
— Bom ano e boas festas!
Mas esperamos sinceramente que 2020 seja um bom ano e as festas felizes. Abro a janela, mais frio, um dia igual a tantos outros, sem nada de novo. Já não se vislumbra o sorriso da rapariga que se vestia de lavado e penteava o cabelo. No ar sentia-se o cheiro a perfume TABÚ de contrabando, comprado nas aldeias raianas. Os rapazes já não vestem a samarra, nem falam em cabeças de gado, nem em alqueires de trigo que se adivinham fartos para o ano novo. Já não há beijos de novidade à beira da fonte, nem as mulheres passam grávidas escondendo o ventre de futuro e esperança, no longo xaile.
A minha vizinha continua agarrada ao cajado, mancando e gemendo:
— Valha-me Deus, valha-me Deus, há mais de uma semana que a galinha poedeira deixou de pôr, não sei o que se passa!
Um homem velho esqueceu-se de recolher a lenha.
— Nem o diabo faz arder esta lenha molhada, nem o diabo!
Treme de frio, de longas ausências, só a mulher que já morreu espreita ao canto da memória, mas o lume continua apagado!
Sofro as ausências dos que estão doentes, foram para o Lar. As casas caem, os xailes não aquecem.
Três crianças jogam à bola na cerca da escola, num dia igual a tantos outros, frios e cinzentos, com o pressentimento que vão chegar os homens do capitalismo e do poder, que não conhecem um arado, uma relha, uma samarra, um xaile velho, uma pita que deixou de pôr, nem a lenha molhada que não arde, dizer do alto da sua proa e astúcia que todos temos que ser solidários e apostar na coesão territorial. Mas na verdade o que eles quase sempre dizem é que todos temos que contribuir para que o ar condicionado não se desligue, os Bancos falidos não fechem as portas e não parem os carros de luxo, as subvenções, as festanças, os almoços, os fados e guitarradas, as visitas ao fim do mundo e continuem as irrevogáveis mordomias.
— Não se aflija vizinha a pita logo, logo põe! Então homem de Deus, como se esqueceu de recolher a lenha!
— Uma pessoa sem a mulher não é ninguém! Quando a minha era viva havia sempre lenha, caldo e uma camisa lavada!
Caem-me no peito as lágrimas mais honradas da longa noite transmontana. Escuto os vizinhos demoradamente. Ninguém fala de política, de desenvolvimento, de discriminação positiva para o nordeste transmontano. Ninguém fala da novíssima Secretária de Estado da Valorização do Interior que se espera que aproxime Lisboa do Portugal profundo do nordeste. Ninguém sabe. Anoitece. Os vizinhos acendem o lume e cismam, na saudade dos filhos ausentes. Fica só o sorriso dos netos no retrato que guardam ao peito.
Eu irei morrer, os meus vizinhos irão morrer. Quem ficará nas terras bravas transmontanas para garantir o futuro, acender o lume, na esperança do Ano Novo?!
— Bom dia vizinho!
— Bom dia e boas festas!