NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Vasco Fernandes, o Pataranha (n. Vila Flor, c. 1485)

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Domingo de Páscoa de 1497 aconteceu em Portugal o mais terrível ato de religiocídio. Com efeito, por ordem do rei D. Manuel, as crianças judias foram tiradas aos pais e entregues a famílias cristãs que as levaram às igrejas a batizar e com elas ficaram para as educar. Não cabe aqui descrever as violências dos carrascos, os gritos dos inocentes e os clamores desesperados dos pais. Bispos como D. Fernando Coutinho ou D. Jerónimo Osório condenaram vivamente o ato e declaram-se pela nulidade do batismo forçado.
Vasco Fernandes foi uma das crianças assim batizadas em Vila Flor. Tinha 12 anos “quando tomaram os meninos” aos judeus e o levaram à igreja de S. Bartolomeu, como ele contaria mais tarde. E não foi o único dos irmãos a ser levado à pia batismal. A irmã Violante, 7 anos mais nova, dirá também que não sabia o seu nome de judia “porque era muito pequena quando a levaram de casa de uma ama a batizar”. (1) E certamente levaram os outros irmãos, como levariam todas as crianças judias.
Também não sabemos se o pai de Vasco e Violante era cristão ou judeu e se foi igualmente “obrigado” a receber o batismo e um nome cristão. Sabemos que se chamava Vasco Fernandes, como o filho, que era mercador e que veio a falecer na década de 1540. A mãe é que não foi batizada pois faleceu judia, no tempo em que ainda havia judeus em Portugal. E porque os nomes judeus também foram proibidos, ela ficaria anónima para sempre. Nem sequer podemos recordar o seu nome e resgatar a sua lembrança! 
Não fica muito claro qual seria a profissão de Vasco Fernandes. Ele apresentava-se como lavrador mas um seu denunciante afirmou que ele “ganhava a vida com uma besta”. Era natural e morador em Vila Flor, terra onde casou com Filipa Rodrigues. O casal teria pelo menos 3 filhos: António, Isabel e Inês, aquele ainda solteiro e estas casadas, quando o Pataranha foi preso, em Maio de 1558, contando para cima de 70 anos.
Apenas uma denúncia serviu de base à prisão de Vasco Fernandes. Foi feita por Álvaro Rodrigues, o Lamegão, dizendo que ele guardava os sábados como dias de descanso semanal e não os domingos, vestindo naqueles dias camisas lavadas.
Conduzido à inquisição de Lisboa foi metido em uma cela que estava por baixo da que era ocupada por um António de Gouveia, cristão-velho, clérigo de missa e curandeiro, natural dos Açores e que viajara por Espanha, Itália, Alemanha e Brasil e fora preso por superstição e feitiçaria. (2) Obviamente que se insinuava como “judeu” para conquistar a confiança dos companheiros “judeus”. E assim terá arrancado a Vasco Fernandes declarações muito comprometedoras que depois foi contar aos inquisidores. E estas foram culpas acrescentadas ao Pataranha. Vejamos o seu teor:
Que Jesus Cristo não era o Messias e que este ainda não tinha vindo, que viria entre 1560 e 1570. E antes, Roma seria destruída pela terceira vez. E que em Lisboa ouviram os de Vila Flor dizer que “vinham 100 mil judeus pelo mar, das 10 tribos que estavam escondidas, para destruir Portugal, porque andavam cá com esta inquisição”. (3)
Que ele acreditava nisso e “que tinha isso tão metido na cabeça que lho não tirariam com marras nem com picões” e que em Vila Flor havia 70 ou 80 casais que pensavam como ele e como ele esperavam a vinda do Messias.
Que louvava o inglês que, diante do rei, tirou a hóstia das mãos do padre que rezava a missa e a desfez em pedaços e atirou ao chão, acrescentando que “aquilo lhe parecia bom sinal que Deus dera uma bofetada a El-Rey”. (4)
Que ele, a mulher e os filhos guardavam o sábado como dia santo e que, em Vila Flor, ele ia a casa de João Rodrigues, que era casado com uma sobrinha sua, a ouvir ler a Bíblia, uma bíblia que trouxera de Salamanca.
Aliás, do processo (5) de Vasco Fernandes ressalta uma forte ligação entre estes dois homens. E tendo o João Rodrigues sido preso um ano antes, (6) é significativo que Vasco tenha mudado a residência para Castro Vicente, distante mais de 6 léguas de Vila Flor.
Significativo também Vasco Fernandes começou por se declarar inocente, suspeitando que fora preso por denúncias falsas, feitas por João Rodrigues, em ato de vingança. Explicou que devendo dinheiro a João, foi a sua casa para lhe pagar. E então o viu com um livro na mão, que era uma bíblia e que, lendo-lhe uma passagem, o quis doutrinar e convencer que o Messias ainda não tinha vindo e que devia guardar-se o sábado e não o domingo como dia de descanso semanal. E não aceitando ele tal doutrina, antes se afirmando cristão, o outro “o nomeou com injúrias chamando-lhe velho, ruim e velho falso (…) e o dito João Rodrigues pôs as mãos nas barbas ameaçando-o que lho havia de pagar”.
A explicação até poderia ter alguma lógica mas os inquisidores estavam já informados pelo malsim do António Gouveia que Vasco iria fazer uma confissão nesse sentido, acusando apenas o João Rodrigues.
Outras explicações buscaria, na tentativa inglória de convencer os inquisidores da sua inocência. Como a de um João Pires, de Roios, que lhe contara sobre uma grande seca que houvera anos atrás em Vila Flor. E fizeram os cristãos muitas rezas e procissões pelas igrejas e capelas da vila pedindo a Deus que mandasse a chuva, mas nada conseguiram. E então disseram aos judeus que rogassem por água ao seu Deus. E os judeus foram para os campos a pedir água e, à noite, quando regressaram à vila, choveu em abundância. E concluindo o outro a sua narrativa, Vasco Fernandes lhe dissera: - Boa lei é a nossa, João Pires!
Obviamente que desta ingénua confissão de judaísmo, pedia agora desculpa. Tal como pedia desculpa de ter proferido uma praga ofensiva de Deus quando lhe mataram um filho e ele desabafou: - Não haverá Deus nos céus que me vingue deste cabrão que me matou meu filho?!
Das acusações já atrás se disse e não foi muito difícil ao defensor contestar a denúncia do Lamegão, a única que precedeu a sua prisão. Quanto às denúncias do espia do padre Gouveia, o procurador argumentou que não mereciam qualquer crédito. E nisso teve alguma ajuda do alcaide dos cárceres, Brício de Camelo. Com efeito, o Gouveia disse que quando o Vasco Fernandes lhe falara todas as coisas atrás referidas, estava junto dele o alcaide. Este, chamado a depor, prestou o seguinte testemunho, algo comprometedor para o réu:
- Disse que haveria 25 dias, estando uma noite falando o dito António Gouveia com o referido Vasco Fernandes (…) que estava numa casa em baixo do corredor novo, e falavam um com o outro na vinda do Messias e que o réu Vasco Fernandes falou algumas palavras em que dava a entender que o Messias não era vindo e não lhe lembra a forma delas, somente falaram em que Roma se havia de perder e outras palavras que não está lembrado. E ele declarante disse a António Gouveia que perguntasse a Vasco Fernandes os fundamentos em que se baseava para dizer que o messias não era vindo e que lhe respondeu que o tinha tão metido na cabeça que não lhe tirariam a ideia nem com marras nem com picões e que se calasse e não falasse naquelas coisas.
Ao cabo de mais de um ano de prisão, o defensor pedia a absolvição do réu, dizendo “que a sua prisão, trabalho e velhice lhe devia bastar” para castigo das leves culpas que poderia ter. Foi o processo analisado em mesa e pareceu à maioria dos votos que o réu fosse levado a tormento. Na casa do tormento foi levantado duas vezes e ele repetindo apenas que nada tinha a confessar. Acabou condenado a cárcere e hábito a arbítrio. No texto da sentença diz-se que a condenação não é maior por se “haver respeito à qualidade e defeito da dita prova”. A sentença foi lida no auto da fé realizado na Ribeira de Lisboa em 24 de Setembro de 1559 onde abjurou “de vehementi”.

NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Évora, pº 9678, de Violante Fernandes, presa em Janeiro de 1546, viúva de Diogo Pires. Entre outras coisas, Violante foi acusada de comemorar a Páscoa cozinhando pão ázimo para comer com alfaces montesinhas e de rezar o Shemá Israel e a oração de Baruch.
2-ANTT, inq. Lisboa pº 5158, de António Gouveia.
3-MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro – História da Inquisição Portuguesa, p. 63: - A partir do início da década de 60, a atenção do Tribunal dirigiu-se para o círculo de cristãos-novos que se reuniam em pequenos grupos, na Ribeira de Lisboa, para conversar do tempo do advento da “lei de Moisés” (…) Papel de relevo tinham os anciãos de origem castelhana, que transmitiam a memória da religião dos antepassados, sabiam falar e ler hebraico e possuíam profecias em antigos pergaminhos…
4-IDEM, pº 591, de Guilherme Cardinall. A cena teve lugar em 11.12.1552, na capela do Paço Real, estando presentes o rei D. João III e a rainha D. Catarina. Cardinall foi preso, acusado de luteranismo e queimado na fogueira.
5- IDEM, pº 7078, de Vasco Fernandes.
6-IDEM, pº 12463, de João Rodrigues.
 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães