Geralmente, a entrada da inquisição numa terra era seguida de fugas para outros sítios e, sobretudo para o estrangeiro. Em Carção, ao contrário, parece que eles teimavam em ficar e apenas se conhece um ou outro caso de fuga.
Regista-se também, na generalidade das terras, que a inquisição, a mais curto ou longo prazo, conseguiu nelas extirpar “a heresia judaica”, ao menos na aparência, já que em matéria de religião, nunca “uma guerra” se ganha. Pois, em Carção, os filhos, os netos e os bisnetos… ao longo de gerações, continuaram “a luta” de seus pais, avós e bisavós… na resistência à inquisição. Ao contrário de outras terras Trasmontanas, em Carção a “vacina” do santo ofício nunca surtiu efeito e os Carçonenses nunca deixaram de resistir.
A família de Tomás Lopes é disso um exemplo. Outros poderíamos apontar. Por agora fiquemos com seu bisavô, Belchior Lopes, curtidor, nascido por 1615. Foi preso na primeira grande investida da inquisição, em 1664, juntamente com sua mulher, Ana Rodrigues e o genro, Tomás Lopes, regressando a Carção vestidos com o ignominioso sambenito, em março de 1667. (1)
Trinta anos depois, nas grandes levas da década de 1690, foram arrebanhados pelo santo ofício uns 130 Carçonenses. Entre os prisioneiros contaram-se então 5 filhos (as) e 5 genros (noras) de Belchior Lopes. (2) Destes, a filha, Francisca Lopes e a nora, Isabel Luís, a bonita, de alcunha, foram queimadas nas fogueiras do auto da fé de 25.11-1696. (3)
Quando alguém era condenado à morte, a inquisição mandava pintar o seu retrato e escrever o nome em um sambenito que era enviado para a terra do condenado e pendurado na parede interior da igreja matriz. Ficava ali, como bandeira sempre hasteada, para lembrar a ignomínia dos judeus e “domar a soberba dos cristãos-novos”. Era a maior humilhação que podiam sofrer os filhos, netos e bisnetos… dos condenados.
Imagine-se o que sentiriam os netos de Belchior Lopes, quando assistiam à missa dominical e olhavam para aqueles retratos de seus tios, cônjuges, pais ou irmãos!
Outra humilhação foi lançada sobre os cristãos-novos de Carção pelo bispo de Miranda, João de Sousa Carvalho, proibindo-os de servir no cargo de juiz da igreja. E tal proibição terá acontecido exatamente quando o pai de Tomás Lopes ocupava o lugar. E a vara de juiz ter-lhe-á sido ostensivamente tirada da mão pelo pároco, à frente de toda a gente, na missa dominical.
Resilientes, os cristãos-novos de Carção recorreram às justiças eclesiásticas superiores e conseguiram a reversão do decreto do bispo Sousa Carvalho e, em cada ano, revezavam-se no cargo cristãos-velhos e novos. E o primeiro cristão-novo que foi nomeado para o cargo de juiz da igreja foi exatamente o bisneto de Belchior, o nosso biografado Tomás Lopes, no ano de 1721. Tinha então uns 27 anos, era casado com Brites Luís, pai de 4 ou 5 filhos e seria já o homem mais rico da aldeia, morando na casa que fora de Jorge Lopes Henriques que a vendera quando foi para Livorno ao referido bisavô de Tomás.
Uma das obrigações do juiz era manter a igreja limpa, as vestimentas lavadas, os utensílios cuidados e, no dia do orago, ornamentar o templo e pagar a festa.
Pois, nunca em Carção se tinha visto a igreja tão bem ornamentada, com as paredes todas cobertas de papel e seda e brilhantes, como naquela festa! Tudo à conta do juiz Tomás Lopes que até contratou um pintor de Sambade para dirigir os trabalhos.
Particularmente satisfeitos estariam os cristãos-novos da terra que, pela primeira vez, podiam assistir à missa e ouvir o sermão sem ter de encarar os retratos dos relaxados da inquisição, que eram cerca de 20, tapados que estavam com os ornamentos. (4)
Passada a festa e desmontada a decoração, verificou-se que tinham desaparecido 6 ou 7 daqueles retratos, o que não terá motivado qualquer celeuma, não constando que o abade se tenha importado com isso.
Anos depois foi juiz da igreja um primo segundo de Tomás Lopes, chamado Belchior Rodrigues de Lucena e desapareceu a maior parte dos retratos. Os últimos 2 seriam tirados quando o juiz foi Roque Rodrigues da Praça, outro primo segundo de Tomás Lopes, filho da “Bonita”.
No dia de Santo António de 1736, no decurso de uma récita teatral realizada no largo da aldeia, um pastor lançou a seguinte trova:
Graças a Deus para sempre
Agora fará um ano
Que na nossa igreja posta
Naquela parede toda
Ainda se via estopa
E agora por desgraça
Nem uma que ali se topa.
Era o rastilho a atear a pólvora! Logo o roubo dos sambenitos da igreja de Carção se transformou em notícia que correu por toda parte e chegou a Coimbra. Era o maior dos crimes, uma facada na própria inquisição.
De imediato foi ordenada uma devassa, conduzida pelo comissário Pedro da Fonseca Carneiro, abade da igreja de Bouçoães, termo de Valpaços. Confirmada a notícia, mandaram os inquisidores ao comissário António Luís Noga, reitor da matriz de Alfândega da Fé promover uma investigação mais profunda, no sentido de se descobrir os autores dos roubos e a finalidade dos mesmos. Sim, que o receio maior era que os sambenitos fossem usados pelos cristãos-novos como objetos de culto, à imagem do que faziam os cristãos com as relíquias dos santos.
A este respeito, ficariam os inquisidores sossegados, pois nenhum indício apontava para um tal objetivo, já que as vagas notícias colhidas apontavam para os restos de uns retratos que teriam sido vistos enterrados numa vinha e outros metidos debaixo da albarda de um burro. Apenas um Manuel Marinho afirmou que, ”viu ele testemunha em um buraco da parede da casa do banho de Tomás Lopes uma estampa das que estavam na igreja (…) mas passado coisa de 3 horas a quis ele testemunha tornar a ver, já a não achou na mesma parte”.
Sobre os autores materiais do furto, não se encontraram provas concretas e indesmentíveis. Mas todos apontaram que o responsável primeiro foi Tomás Lopes, acompanhado por 4 familiares. (5) Compreende-se a presunção, na medida em que foi com o juiz Tomás Lopes que desapareceram os primeiros retratos; foi em sua casa que alguém disse ter visto um sambenito e ele era o principal entre os cristãos-novos da terra. Ele próprio, aliás, se incriminou, dirigindo-se a Coimbra, ao tribunal, a queixar-se da parcialidade da devassa conduzida pelo comissário Noga e propondo-se pagar do seu bolso uma nova devassa em que fossem ouvidas pessoas indicadas por ele próprio. Que atrevimento!
Obviamente que logo foi mandado prender, seguindo o seu processo os trâmites normais. Não vamos analisá-lo, pois o espaço não permite. Diremos que acabou condenado em 5 anos de desterro para a vial de Cabeção, arcebispado de Évora. Condenado ainda nas custas do processo e nas despesas a haver com a reposição dos sambenitos na igreja de Carção.
Foi a tarefa encarregada ao familiar do santo ofício José da Guerra e Faria que se fez acompanhar do notário Francisco Geraldes da Guerra. Não sabemos como ele houve os sambenitos, já que da generalidade dos que foram roubados se perdeu o rasto. Porventura foram feitos novos retratos, a partir dos originais que se conservariam em Coimbra? Apenas temos a ata certificando que foram pendurados 15 retratos e o nome dos retratados, no dia 27-12-1744. (6)
Notas:
1-Para além de curtidor e agricultor, Belchior Lopes era o responsável pelo fornecimento do pão às tropas aquarteladas na região, trabalhando com o seu irmão Baltasar Lopes de Oliveira, que era o representante, em Trás-os-Montes, da firma dos argentários Mogadouro. Quando foi preso, tinha no “celeiro”, em Carção, uns 400 ou 500 alqueires para o efeito. No mesmo auto, com Belchior Lopes, saíram penitenciados 19 réus de Carção. – ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, ed. Associação Cultural dos Almocreves de Carcão, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso. 2009.
2- ANTT, inq. Coimbra, 5509C, de Belchior Lopes; pº 5502, de Ana Rodrigues; pº 607, Baltasar Lopes; pº 6652, de Isabel Dias ; pº 8894, de Gaspar Rodrigues; pº 6731, de Isabel Luís, relaxada; pº 4633, de Francisco Lopes; pº 3860, de Francisca Lopes, relaxada ; pº 5204, de Luís Lopes; pº 2703, de Catarina Lopes; pº 394, de Francisco Rodrigues, sargento; pº 9453, de Manuel Jerónimo Pires.
3-Neste auto, saíram 88 pessoas, sendo 43 de Carção; foram 14 os relaxados em carne, 12 deles de Carção e 5 relaxados em estátua, sendo um de Carção.
4-Os números não coincidem, variando entre os 18 e os 30. Nós inventariamos 19 relaxados em Carção.
5-Os outros responsáveis indicados foram 3 netos de Belchior Lopes: (Belchior Rodrigues Lucena, Roque Rodrigues da Praça, Miguel Luís) e um Jerónimo Álvares, genro de Miguel Luís. Todos foram condenados em desterro.
6-ANDRADE e GUIMARÃES – A reposição dos sambenitos roubados na igreja de Carção, in: revista Almocreve 2012, pp. 48-53.