Ganhou lugar de destaque na história dos judeus e marranos de Trás-os-Montes pelo pior dos motivos – delator e falsário. Perante as suas denúncias, fica-se com a impressão de que elas não foram forçadas, ou visando a própria libertação, como geralmente acontecia, antes foram voluntárias e planeadas. E se a princípio o alvo principal de suas denúncias era a família Samuda, onde ele, seu irmão e sua irmã estavam casados, depois entrou de denunciar a “fina flor” da sociedade de Beja (médicos, advogados, ourives, boticários, mercadores), incluindo cristãos velhos. Das suas denúncias resultaram dezenas de prisões e alguns dos prisioneiros não aguentaram, acabando por endoidecer. Foi uma autêntica razia entre a gente da nação de Beja! Os próprios inquisidores se confessaram enganados por este delator sem escrúpulos. E entregaram-no ao tribunal da Relação, como falsário.
Francisco de Sá nasceu em Faro, terra para onde emigraram os seus pais, Rafael de Sá e Luísa Mesquita, naturais e moradores em Bragança. Ambos foram presos em 1660, sendo ainda solteiros, saindo penitenciados no auto de 9.7.1662. (1)
Ao findar de 1703 Rafael era já defunto e a família morava em Lisboa no bairro de Alfama. O filho mais velho, António da Mesquita, médico, pai de 6 filhos encontrava-se preso na inquisição de Lisboa, tal como a sua mulher Guiomar Maria e o cunhado João Esteves, marido que fora de sua falecida irmã Grácia Mesquita. Refira-se que João e Guiomar eram irmãos entre si, filhos do médico Simão Lopes Samuda. (2)
Francisco tinha então 24 anos, encontrava-se solteiro e era também formado em medicina. Convicto de que os presos o denunciariam e receando ser também preso, meteu-se a caminho de Coimbra e apresentou-se na inquisição confessando suas culpas e pedindo perdão. (3) As pessoas que denunciou como seus cúmplices estavam todas presas e, na generalidade, moravam em Lisboa. E a grande maioria pertencia à poderosa família dos Samuda, de Beja. Como usa dizer-se, Francisco atirou-se aos Samuda “como gato a bofe”.
Autuadas as suas confissões, foi mandado embora, mas que voltasse em Janeiro seguinte. Cumpriu esta ordem e ouviu a sentença: abjuração em mesa perante os senhores inquisidores, com penitências espirituais, podendo regressar a Lisboa e aos seus negócios.
Que negócios teria não sabemos. De contrário, sabemos que era muito viajado e conhecia uma grande parte de Espanha e muito Portugal. Em Setembro de 1705 estava em Lisboa e foi ali apresentar-se no tribunal da inquisição onde denunciou mais uma série de pessoas.
Não sabemos quando é que ele mudou a residência para Beja onde, em Setembro de 1718,o administrador do assento da comarca, João Nogueira da Silva recebeu de Lisboa uma procuração do mercador Luís Cardoso da Paz, para o executar por uma dívida de 300 e tantos mil réis.
Ignoramos se então era já casado com Isabel de Sequeira, mulher viúva. Ficamos sim com a impressão de que em tal casamento o médico Francisco Sá procuraria solução para os seus problemas financeiros, pois andava carregado de dívidas.
Entretanto em Beja havia uma forte comunidade de cristãos novos judaizantes, contando-se entre eles muitos médicos, advogados, ourives, assentistas, homens de negócio. E juntavam-se algumas vezes na roda do ano em casa do “latifundiário” João Álvares de Castro, na celebração de Academias e Comédias e em reuniões de Sinagoga. A escolha da casa justificava-se por ter amplos salões e ser retirada da cidade, no sítio do Carmo Velho.
Em Fevereiro de 1720 ter-se-á ali celebrado uma dessas Academias e, dias depois, uma reunião em Sinagoga na qual terão participado 57 pessoas, conforme relato feito por um dos participantes, na inquisição de Évora, em 22.11.1720. (4)
Outro dos participantes foi o nosso médico Francisco Sá Mesquita que a ela foi levado pelo administrador do tabaco das comarcas de Beja e Ourique, Diogo José Ramos, aparentemente o seu único amigo e que nele depositava confiança, em termos de declaração religiosa. (5) Certamente se arrependeria sabendo que, em 9 de Setembro daquele mesmo ano, Francisco Mesquita se apresentou na inquisição de Lisboa e contou pormenorizadamente como fora levado a essa casa e participara em duas ou três dessas reuniões, denunciando 93 pessoas que nelas participaram e cujos processos estão identificados. (6)
No mês de Outubro seguinte, o diabo andou à solta pelas ruas da cidade. Só no dia 18 foram ali aprisionados 21 homens. E muitos outros se seguiram, levados uns para as masmorras de Évora e outros para as de Lisboa. O estudo destes processos e a análise aprofundada desta “cumplicidade de Beja” daria uma obra fantástica e dela resultaria um retrato inigualável da sociedade e da região. Esse, porém, não é o nosso objetivo.
Estamos então em Beja acompanhando aquelas manadas de prisioneiros que, de imediato e “uniformemente” deitaram as culpas sobre “o cão do Sá”. Esta notícia correu “por toda a cidade de Beja e todo o Alentejo e ainda nesta Corte por todos os cristãos-novos”. Depois, à medida que os diferentes processos iam prosseguindo, a dúvida instalou-se nos inquisidores. Alguns dos presos foram considerados inocentes e soltos. Outros, como José Pereira Botelho, conseguiram provar que eram cristãos-velhos, falsamente acusados. Francisco Raposo, alferes do regimento de Arraiolos, endoideceu e foi morrer no hospital real. O mesmo aconteceu com Tomás da Costa Travassos, lavrador, proprietário da quinta da Aguieira. Sinais de loucura apresentava também o caixeiro Estêvão da Silveira que foi entregue ao Dr. Francisco da Costa para que o tratasse. Mais determinado e reafirmando a sua inocência se mostrou o médico Simão Gonçalves Bravo “que se não quis tratar” e faleceu no cárcere.
Enquanto isso, Francisco Mesquita viu-se excomungado por dívidas à igreja e o reitor dizia tê-lo “em conta de mau cristão e de muito má alma e homem de pouca verdade”. Para cúmulo da desgraça, em Outubro de 1721 foi preso e levado para a cadeia civil de Évora, executado por uma dívida à Casa do Infantado, contraída ainda antes de casar. E estando preso na cadeia civil, foi umas 15 ou 16 vezes levado sob escolta ao tribunal da inquisição de Évora para ser interrogado por questões referentes a matérias da fé, naturalmente. E isto avolumou as suspeitas de delator e falsário que sobre ele caíam.
Finalmente, em 23 de dezembro de 1722, foi preso pelo tribunal da inquisição de Lisboa. O processo tem mais de 2 000 páginas e o seu estudo daria uma boa tese de doutoramento. Por nós diremos que, a partir de certa altura, os inquisidores se preocuparam fundamentalmente em buscar “alguma clareza para averiguação da falsidade do réu”. E na sentença pode ler-se, nomeadamente:
- Sem temor de Deus e da justiça, induzido pelo demónio, em grave dano de sua consciência e notável prejuízo dos fiéis cristãos (…) temerariamente, em seu próprio nome e com outro suposto, variando também de trajes para não parecer o mesmo (…) informou também falsamente na pureza do sangue, declarando serem cristãos-novos, dando ocasião com este diabólico artifício a que fossem presos no cárcere do santo ofício com fatura grande de honra e fama, saúde e fazenda, ( …) sem se poder acudir a remediar o dano dos miseráveis que inocentemente teriam padecido por causa de suas falsidades…”
Acabou condenado à morte “por convicto e confesso do crime de haver testemunhado falso na mesa do santo ofício contra cristãos-novos e cristãos-velhos” comparecendo no auto da fé com carocha e rótulo de falsário, depois do que foi entregue ao poder civil. Assim, no seu processo aparece também a sentença proferida pela Relação de Lisboa que mandou levá-lo “com baraço e pregão pelas ruas desta cidade até à Ribeira” onde foi enforcado, em 10 de Outubro de 1723.
Haverá explicação para o inqualificável procedimento deste homem? Só Deus saberá. Por nós diremos que ele foi um médico que se enterrou em dívidas e não conseguindo pagá-las e vendo-se acossado, ensaiou uma fuga para a frente tentando “meter na inquisição” todas as pessoas que, de algum modo o vexavam ou podiam vexar. Certamente que em muitas das suas denúncias de judaísmo havia uma base de realidade mas o castelo de falsidades construído desabou sobre a sua cabeça.
NOTAS
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 6008, de Rafael de Sá; pº 2023, de Luísa da Mesquita.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 8247, de Guiomar Maria Henriques; pº 8337, de João Esteves Henriques Samuda; pº 153, de António da Mesquita. Este foi condenado em 7 anos de degredo para S. Tomé.
3-IDEM, inq. Coimbra, pº 11300, de Francisco Sá Mesquita.
4-IDEM, pº 678, de Manuel de Sousa Pereira. Entre os 57 denunciados contou-se o médico brigantino Henrique (Jacob) Castro Sarmento, depois fugido para Londres – ANDRADE e GUIMARÃES, Jacob Castro Sarmento, ed. Veja, Lisboa, 2010.
5-IDEM, inq. Lisboa, pº 1647, de Diogo José Ramos. Um verdadeiro calvário foi a vida deste homem depois que foi preso pela inquisição e condenado a servir nas galés.
6-IDEM, pº 11300-2, Francisco Sá Mesquita.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães