O pai, Rodrigo Vaz de Leão, nasceu em Vila Real, terra de sua mãe, sendo filho de António Vaz de Leão, originário de Sambade. (1) Casou em Vila Flor com Isabel Henriques, filha de Pedro Henriques da Mesquita, de Lebução e de Violante Henriques, de Vila Flor. Depois de algum tempo de morada em Vila Real e Vila Flor, o casal foi-se estabelecer em Lisboa, na Rua Nova, onde abriram uma “loja de sedas, milanesas, baetas, serafinas e duquesas”. Aos 34 anos Rodrigo era já um poderoso homem de negócios. Imaginem: quando o prenderam, acabava de vir de uma feira do Alentejo e trazia consigo, em dinheiro, a quantia de 2 mil cruzados. Quase um conto de réis, produto de uma feira! (2)
Antes de prosseguirmos, convém dizer que Rodrigo tinha um irmão chamado Miguel, que era médico e casou com Guiomar Henriques, irmã de Isabel, que viveram em Lamego. Miguel foi penitenciado pela inquisição, em 1664 e em 1703, era já falecido. Guiomar Henriques vivia em Roma com os filhos.
Voltemos a Isabel Henriques e Rodrigo de Leão, que foram presos ao final de Agosto de 1663. Este saiu penitenciado em cárcere e hábito a arbítrio um ano depois. Sabemos que 40 anos mais tarde ele abandonou o país e foi para a França, sendo ainda vivo em 1725. Isabel Henriques foi relaxada no auto da fé de 4.4.1666. Chegou até nós o registo seguinte, assinado pelo padre Álvaro da Fonseca:
- Foi-me entregue uma estampa de Isabel Henriques, natural desta Vila Flor, a qual mandei fixar na igreja matriz de S. Bartolomeu, junto a outros retratos que nela estão. Por ser verdade e me ser pedida, passei esta por mim feita e assinada aos 12 de março de 1667. (3)
Quando foram presos, Rodrigo e Isabel deixaram 3 filhas, a mais velha de 13 anos, a nossa biografada, e a mais nova de apenas 3. Esta chamou-se Leonor e sempre viveu na casa paterna, mantendo-se solteira.
Maria Henriques foi casar em Carrazedo de Montenegro, com Gaspar Mendes Cespedes, natural de Medina del Campo, de uma família ascendência em Quintela de Lampaças. Talvez com receio de ser preso, como prenderam o pai e outros familiares, Gaspar tomou a iniciativa de se apresentar em Coimbra, em 1670, quando tinha 18 anos e era ainda solteiro. Saiu em 18.11.1674, condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito que lhe foi tirado depois da leitura da sentença. (4)
O casal constituído por Gaspar Mendes Cespedes e Maria Henriques fixou residência em Lisboa, se bem que ele andasse em constantes viagens pela província, “entretido” na cobrança de rendas, como resulta do depoimento de Manuel Arroja:
- Disse que haverá 8 anos, em Lisboa, ao Correio Mor, em casa de Gaspar Mendes Cespedes, casado com Maria Henriques, natural de Trás-os-Montes, morador em Lisboa, de onde se ausentou à mesma província a cobrar umas rendas… (5)
Gaspar e Maria tiveram 7 filhos. Alguns deles, cedo rumaram a França, ainda solteiros. Foi o caso de Diogo Lopes Céspedes; Leonor Mendes e Ângela Mendes.
Com o nome do avô materno, Rodrigo Vaz de Leão, foi batizado o mais novo dos filhos de Gaspar e Maria Henriques, nascido por 1692. Foi casar em Trancoso, com Ana Maria Guterres e ganhou nome e prestígio na classe dos rendeiros e contratadores. Em 1721, de parceria com Gaspar Lopes Pinheiro, arremataram por 10 00 cruzados/ano, o assento das tropas da Beira, conforme informação colhida no processo do pai de Gaspar:
- No ano de 1721 para 1722 arrematou seu filho, Gaspar Lopes Pinheiro e Rodrigo Vaz de Leão, de Trancoso, o assento da província da Beira, de que ficaram ambos com igual parte, tendo ele declarante uma escritura da sociedade pela qual se obrigava a custear em 5 000 cruzados por parte de seu filho… (6)
Consciente do passado da família no tribunal da inquisição, Rodrigo decidiu ele próprio, em 1727, apresentar-se nos Estaus e confessar suas culpas. Com esta atitude conseguiu que os seus bens não fossem penhorados. Mas não o salvou de ficar encarcerado por dois anos, saindo condenado em cárcere e hábito. (7)
A filha Isabel Mendes, casou com o seu parente Francisco Lopes Céspedes, o qual, em 1725, viria também a conhecer as prisões do santo ofício. Com residência estabelecida em Carrazedo de Montenegro, Francisco era igualmente rendeiro e trabalhava em conjunto com o pai e os parentes. Veja-se, a propósito, o testemunho do mesmo contratador de Freixo de Numão:
- O sobredito Rodrigo Vaz de Leão arrematou o triénio passado a renda do almoxarifado da vila de Chaves na Casa se Bragança, de que é fiador seu primo Diogo Lopes Cespedes e seu filho Francisco Lopes Cespedes cunhado do dito Rodrigo Vaz de Leão, moradores em Montenegro, termo de Chaves, e por serem fiadores deviam de ter sociedade da metade do dito contrato (…) em que tem havido muitos e crescidos ganhos (…) que passavam de 6 contos de réis os lucros… (8)
Branca Mendes se chamou outra filha de Gaspar e Maria. Casou com Mateus de Sousa Henriques, nascido no Fundão, por 1670, filho de Jorge Coelho Henriques e Ana Maria de Sousa, ambos penitenciados pela inquisição de Lisboa. Pelo ano de 1700, o casal foi para França, fixando-se em Bayonne. Na diáspora, assumiram abertamente a condição de judeus, tomando os nomes de Rachel Henriques e Abraham Sousa Henriques. Abraham fez seu testamento em Saint Esprit, perto de Bayonne, em 17.6.1731 e nele pedia à sua “amada mulher que se encarregue das exéquias do meu funeral”. (9) Resta acrescentar que o casal teve 13 filhos, que se espalharam pelo mundo, aportando nomeadamente à Jamaica, com descendência ainda hoje referenciada.
O filho Francisco Lopes Céspedes, nascido por volta de 1682, formou-se em medicina e casou com sua parente Guiomar Henriques. Foi também preso pela inquisição e, depois de retomar a liberdade, abalou para a França.
Voltemos a Maria Henriques. Contava 50 anos quando foi presa pela inquisição de Lisboa, em dezembro de 1703, juntamente com sua irmã Leonor e o seu filho Francisco, que então era estudante de medicina. Saíram penitenciados em cárcere e hábito, no auto da fé de20.10.1704. (10) Depois foram todos para França.
Notas:
1-ANDRADE e GUIMARÃES – Marranos em Trás-os-Montes Judeus-Novos da Diáspora O Caso de Sambade, pp. 105-112, ed. Lema d´Origem, Porto, 2013.
2-ANTT, inq. Lisboa, pº 2842, de Rodrigo Vaz de Leão. Entre os fornecedores de mercadorias a Rodrigo identificamos vários comerciantes ingleses, um hamburguês, um holandês, três franceses e um italiano, o que deixa antever um forte movimento de importações. Dos muitos fornecedores nacionais, destacamos Diogo Rodrigues Marques, gerente da firma dos Mogadouro. Em contrapartida, Rodrigo Vaz fornecia comerciantes com loja na província, nomeadamente em Coimbra, Trancoso e Mogadouro. Da qualidade dos produtos vendidos, temos notícia de que, querendo o conde de Castelo Melhor oferecer um gibão a el-rei, mandou comprar os panos à loja de Rodrigo. Este, para além de mercador, era rendeiro, trazendo arrematadas as comendas de S. João e S. Salvador de Ansiães, “pertencentes à filha de D. Leonor de Vilhena, que agora está casada com D. Manuel de Melo”.
3-IDEM, pº 7294, de Isabel Henriques, tif 195. Por dois anos e meio, Isabel se manteve no cárcere, negando todas as acusações. Depois confessou que “haverá 18 ou 19 anos, em Vila Flor, foi a casa de Isabel Henriques, tia materna dela confitente, casada com Diogo Rodrigues Coutinho, cristão-novo, mercador e com Ana Henriques, tia materna dela confitente, viúva de Bernardo Lopes, meio cristão-novo, e com Leonor Coutinho e Maria Henriques, todas cristãs-novas, irmãs entre si e primas dela confitente, filhas de Diogo Rodrigues Coutinho e Isabel Henriques, e Leonor Coutinho é já defunta e as outras eram solteiras, ao tempo de sua prisão e viviam com a mãe. E ali se apartou e a dita crença lhe durou até se resolver a confessar”. Nas suas confissões, Isabel procurou sempre salvaguardar a sua família, pelo que os inquisidores a consideraram diminuta e a condenaram a relaxe. Foram dramáticos os últimos dois dias de vida de Isabel. Quando lhe ataram as mãos e a informaram que ia ser queimada, ela pediu mesa e fez novas confissões. Ao outro dia, de manhã e de tarde, novos pedidos de mesa e mais confissões. Finalmente, no decurso do auto, voltou a pedir mesa e “na casa apartada para as audiências” confessou que também se declarara com seu marido como seguidora da lei de Moisés. Concluíram os inquisidores que “as últimas confissões não foram recebidas por deixar de dizer de sua irmã e cunhado, que são testemunhas contra a ré e a denúncia contra o marido é diminuta”.
4-IDEM, inq. Coimbra, pº 2481, de Gaspar Mendes Cespedes.
5-IDEM, inq. Lisboa, pº 3686, de Francisco Lopes Cespedes.
6- IDEM, inq. Lisboa, pº 1437, de António Dias Fernandes, tif. 182.
7-IDEM, pº 3777, de Rodrigo Vaz de Leão.
8-IDEM, pº 1437, pp. 197-198.
9-ANDRADE e GUIMARÃES, ob cit., onde se publica o seu testamento. ANTT, inq. Lisboa, pº 10736, de Jorge Coelho Henriques; pº 10085, de Ana Maria de Sousa.
10-ANTT, inq. Lisboa, pº 1950, de Maria Henriques; pº 5779, de Leonor Henriques; pº 3686, de Francisco Lopes Céspedes.
NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Maria Henriques (n. Vila Flor, 1650)
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães