Nasceu em Freixo de Espada à Cinta pelo ano de 1696, no seio de uma família cristã-nova com largo historial na inquisição que, poucos anos antes, tinha queimado uma sua tia materna, chamada Marquesa da Fonseca. (1) Francisco Nunes era o nome do seu pai, que tinha a profissão de torcedor de sedas. Faleceu antes que o filho completasse 14 anos, altura em que este seria iniciado na lei de Moisés por sua mãe, Filipa da Fonseca, a qual era originária de Trancoso e tinha 16 anos quando, em 1667, se apresentou na inquisição de Coimbra, onde confessou suas culpas, posto o que foi mandada de regresso a casa. Passados 17 anos, em 1684, morando em Freixo e sendo já casada, foi presa pelo mesmo tribunal, saindo penitenciada em cárcere e hábito perpétuo, no ano seguinte. (2) Em Abril de 1735 os inquisidores de Coimbra decretaram que fosse novamente presa. Tal não aconteceu porque Filipa era já falecida.
Chegado à idade adulta, certamente por viver em permanente constrangimento, apontado como judeu e filho de judeus, José Nunes abandonou Freixo de Espada à Cinta e, depois de estar cerca de um ano em Murça de Panoias, dirigiu-se para a cidade do Porto e dali embarcou para o Brasil. Foi ter ao Ribeirão do Carmo, região da Baía, onde as minas de ouro, recentemente descobertas, exerciam forte atração. Não foi nas minas que ele começou a trabalhar, mas como caixeiro de seu parente Francisco Ferreira Isidro. (3)
Com a prisão de F. Isidro, em 1726, o caixeiro mudaria de ofício, metendo-se também na aventura da exploração mineira. E Talvez por chegar a notícia da descoberta de diamantes nas minas de Cerro Frio, para lá se dirigiu o nosso Freixenista que, no “arraial” mineiro, adquiriu uma casa bastante boa, a julgar pelo preço de compra – 166 400 réis. Comprou também dois escravos (um macho e uma fêmea), por 480 000 réis. Não sabemos quem lhe vendeu os escravos mas ele dá-nos notícia de um homem, originário de Vila Nova de Foz Côa, com familiares em Freixo de Espada à Cinta que, naquela região do Brasil era “tratante de negros” – Francisco Fernandes Camacho. (4)
E estes, casa e escravos, eram os bens que ele tinha quando o prenderam e arrolaram suas pertenças. (5) Curioso que não tinha ouro nem diamantes mas tinha uma razoável dívida para com Rodrigo Nunes – 500 oitavas de ouro! E perguntado sobre a sua profissão, dizia-se “vendeiro”.
José Nunes foi preso em outubro de 1733, ficando no Rio de Janeiro a aguardar embarcação para Lisboa, onde chegou ao findar do mês de agosto do ano seguinte.
Metido na cadeia, logo entrou de confessar que fora doutrinado por sua mãe e que, embora se apresentasse publicamente como cristão, ele seguia os preceitos da lei de Moisés sempre que podia. E logo acertou nas pessoas que o tinham denunciado e que foram: Francisco Gabriel Ferreira e Leonor de Campos Currales. (6) Não acertou em sua tia, Filipa Mendes, o que foi desculpado pelos inquisidores do modo seguinte:
- A diminuição de sua tia Filipa Mendes (é compreensível) porque, conferidas e examinadas as genealogias, consta não ser sua tia direita, se pode presumir esquecimento, e principalmente no réu que não ocultou os parentes mais chegados.
Na verdade, no processo de José foi também incluída a genealogia da mesma tia. E se foram compreensivos nesta “diminuição”, a verdade é que ele denunciou muitas pessoas que com ele se tinham declarado judeus e feito cerimónias judaicas, “pessoas conjuntas e não conjuntas e com muitas das quais não estava indiciado”- como os inquisidores também anotaram.
Na lista dos denunciados por José Nunes contou-se a sua irmã, Ana Nunes e o marido desta, Manuel Soares, Baeta, de alcunha. Estes haviam sido presos pelo santo ofício de Coimbra em Junho de 1725. Manuel faleceu mesmo nos cárceres da inquisição, em 30.5.1726 e Ana saiu penitenciada no auto público da fé celebrado um mês depois. (7)
À data da prisão, o casal tinha dois filhos, chamados, respetivamente, Francisco e José Soares, que ficariam “ao Deus dará” pois que, com a prisão dos pais e o sequestro dos bens, a casa de morada foi cerrada e selada. Não sabemos que idade tinha então o Francisco, que seria o filho varão mais velho. E dele nada mais sabemos, a não ser que, em 1734, era já falecido e que falecera em Amesterdão, onde viveu como judeu e com o nome hebreu de David. O José, por seu turno, contaria uns 6 anos e podemos seguir o seu percurso de vida até aos 20 anos.
Por agora acompanhemos Ana Nunes no regresso a Freixo de Espada à Cinta, depois que saiu da prisão de Coimbra. Vendo-se viúva e sem eira nem beira, pegou no(s) filho(s) e abandonou o país, refugiando-se em Londres. Ali, ela aderiu abertamente ao judaísmo, tomando o nome de hebreu de Sara. E tratou de dar uma educação judaica ao(s) filho(s). Assim, sabemos que o José foi circuncidado, com o nome judeu de Daniel, e passou a frequentar a sinagoga e a aprender a lei de Moisés.
Na Inglaterra permaneceram por 5 anos. Dirigiram-se depois para França, instalando-se na cidade de Bordéus. Ali viveram 3 anos e Sara casou segunda vez com um judeu público chamado David. Nessa ocasião, Daniel Soares decidiu-se a procurar vida noutras paragens, dirigindo-se para a cidade Amesterdão.
Da vida de José Soares na grande metrópole holandesa, durante 3 anos e meio pouco sabemos. Porventura não conseguiria integrar-se plenamente na “nação hebreia” e encontrou inesperado apoio em uma mulher católica e no frade agostiniano que ali conheceu, chamado frei Joaquim Sarmento. Este o terá convencido a regressar à religião católica em que foi batizado. E os dois resolveram abandonar a Holanda e meter-se a caminho de Lisboa, onde chegaram dias antes do Natal de 1739.
Nessa mesma noite José Soares foi apresentar-se no tribunal da inquisição onde contou a sua vida de judeu, que fora batizado em Freixo de Espada à Cinta e cresceu e foi educado como cristão até à idade de 6 anos; que depois fora instruído pelos mestres judeus e como judeu frequentava as sinagogas, em Londres, Bordéus e Amesterdão. Dizia-se inspirado pelo Espírito Santo, pedia perdão de suas culpas e prometia ser bom cristão. (8)
Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 7885, de Marquesa da Fonseca. Anos antes haviam sido processadas a mãe e a irmã desta, chamadas respetivamente Beatriz da Fonseca e Maria da Fonseca.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 4511, de Filipa Fonseca.
3-ANDRADE e GUIMARÂES, jornal Nordeste nº 1087, de 12.9.2017.
4-Francisco Fernandes Camacho era natural de Fozcôa, casado com Luísa Maria Pereira, de Mogadouro. O casal morou muitos anos no Brasil, onde lhe nasceram 4 filhas e um filho. Começando a inquisição a prender pessoas das suas relações, mandou a mulher e os filhos regressar ao reino e a Vila Nova de Fozcôa, onde sua mulher foi presa, acabando queimada pela inquisição de Coimbra. Sabendo-se denunciado e pressentindo que seria também preso, embarcou para o reino. Chegado aos Açores, foi apresentar-se ao bispo de Angra, dizendo que vinha do Brasil apresentar-se na inquisição de Lisboa mas que se encontrava doente e ficaria nos Açores até se curar. Trazia, inclusivamente, um papel escrito onde contava tudo isso, pedindo ao Bispo que o enviasse para o tribunal de Lisboa. Ele, porém, em vez de rumar a Lisboa, tomaria um barco, fugindo para a Inglaterra. Tempos depois mandou ordem para que os filhos fossem ter com ele. Com esse objetivo, apanharam um batel na Ribeira de Lisboa e dirigiam-se para um barco fundeado ao largo do Tejo. Não embarcaram porque se levantou uma tempestade e o batel voltou para terra. A história foi contada por Francisca Lopes, uma das filhas de Francisco Fernandes Camacho, que foi depois apresentar-se na inquisição de Lisboa. – ANTT, inq. Lisboa, pº 3784, de Francisca Lopes.
5-ANTT, inq. Lisboa, pº 430, José Nunes.
6-Leonor Campos Currales foi presa juntamente com 3 irmãs: Maria, Mariana e Violante. Processada também na mesma altura foi sua cunhada, Ana Henriques, natural de Ventozelo, mulher de seu irmão Diogo Campos Currales. Eram filhos de Diogo Currales, cirurgião, originário de Castela e de Maria de Campos, natural de Foz Côa. O sobrenome “Currales” tê-lo-ão tomado da terra da naturalidade do seu pai.
7-IDEM, pº 6131, de Ana Nunes; pº 9671, de Manuel Soares, o Baeta.
8-IDEM, inq. Lisboa, pº 8020, de José (Daniel) Soares.