NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Oliveira (relaxado em estátua em 1694-10-17)

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O comissário Bartolomeu Gomes da Cruz procurou nos livros paroquiais de Carção o assento de batismo de João Oliveira, mas não encontrou. Foi à cadeia de Bragança onde estava presa Ana de Oliveira, (1) sua irmã, e esta lhe disse que João nascera por 1657, “em um lugar junto à vila de Mansilha de las Mulas, termo de Leão - Castela”, onde seus pais viveram alguns anos, no tempo da guerra da Restauração. Dele ficou ainda o seu retrato físico: “alto de corpo, grosso, cara morena, grande, redonda, olhos correspondentes a ela, cabelo negro, crespo e curto”. E ficou a memória de ter sido o único cristão-novo de Carção relaxado em estátua, no auto da fé celebrado em Coimbra em 17.10.1694.

António de Oliveira, e Catarina de Leão foram seus pais. O casal residiu em Izeda (2) e a família repartia-se ainda por Vimioso, Carção e Argozelo, indo, mais tarde, aumentar a emigração para Castela. De regresso à pátria, António Oliveira fixou-se em Carção, onde foi “obrigado do açougue”.
Em Carção se criou o pequeno João Oliveira que depois casou com Catarina Lopes ou Pires e ali assentou morada, dedicando-se à criação de sirgo e fabrico de seda. E tinha também uma criação de sirgo na aldeia de S. Martinho do Peso, termo da vila de Penas Roias, atualmente do concelho de Mogadouro, onde assistia às temporadas, especialmente no verão, acaso por ali haver maior abundância de alimentos.

Na sequência das denúncias de celebração “pública” do Kipur em Carção, nos anos de 1688 e 1689, bem como das noticiadas “missas” judaicas celebradas pelo seu primo Domingos, também João Oliveira e Catarina Pires, sua mulher, foram mandados prender pela inquisição de Coimbra, em 21.5.1691. A ordem foi dada ao comissário da inquisição Bartolomeu Gomes da Cruz que dessa honrosa missão encarregou o padre Ciríaco Annes, da vizinha aldeia de Santulhão. (3)
Planeou o padre Ciríaco proceder às referidas prisões na igreja, no decurso da missa do domingo, 17 de junho. Prendeu apenas a mulher, já que ele não estava. Disse-lhe aquela que João tinha ido buscar folha de amoreira para os bichos, mas que à tarde regressaria a casa. Não esperou o abade. Meteu-se a caminho da vila de Algoso e ali, deixou a prisioneira, entregue ao juiz de fora. Meteu-se depois a caminho, em busca de João. Foi encontrá-lo no caminho entre Algoso e Campo de Víboras, em sítio “ermo e despovoado”. Vinha conduzindo uma égua carregada com sacos de folha de amoreira.
Astuto, o abade cumprimentou-o e pediu que fosse indicar-lhe o caminho para a aldeia de Matela. Anuiu o criador de sirgo, certamente a custo, pois tinha de voltar para trás. Andaram a distância de um tiro de pistola e João, depois de apalpar os bolsos, disse que perdera o lenço e que tinha de voltar atrás a procurá-lo. Aceitou o padre, tentando nele inspirar confiança. Porém… breve topou que Oliveira se distanciava e não voltaria. Antes cortou as cordas da carga e deixou cair os sacos de folha, montando a égua e pondo-se em fuga pelo monte. Espicaçou o padre a sua égua, em perseguição do fugitivo, que apanhou. Envolveram-se então em luta feroz, corpo a corpo.
A história foi contada com todo o colorido pelo próprio padre e repetida por seus amigos e correligionários como o padre da vila de Algoso. Saboreiem um pouco da sua prosa:
- Tanto que viu que o dito padre se vinha chegando a ele, puxou da espada, requerendo-lhe que se fosse embora, que o deixasse; e com esta deliberação se apeou o dito padre puxando de uma catana que trazia e investiu e estiveram por espaço de meia hora brigando, tirando-lhe muitas estocadas (…) e lhe tirou a espada da mão e tratou de o prender com umas cordas, de pés e mãos, para melhor segurança… (4)
Devia ser forçudo e destemido o abade. Ou teria o Oliveira algum escrúpulo em o trespassar à espada? Facto é que, estando o padre a atar-lhe as mãos e os pés, João Oliveira ripou de uma navalha e “com ela lhe deu duas facadas, uma por baixo da teta esquerda, e penetrante, de sorte que por ela saía a respiração e outra da mesma parte, junto ao quadril; e vendo-se ele dito padre mortalmente ferido…”
Terminou a luta com o Oliveira a deixar no sítio o chapéu, a casaca, a espada e a sua bainha, enquanto o padre pegava na dita espada e, com a mula pela rédea, incapaz de montar, e se dirigia para a estrada. Logo apareceu um homem de Campo de Víboras, com um jumento carregado com duas “saqueadas” de pão que ali deixou para montar o abade no jumento e levá-lo à vila de Algoso onde foi assistido por um cirurgião, pois “vinha todo extravasado de sangue” – no dizer do pároco de Algoso.
Obviamente que de tudo se fez mais tarde um inquérito, com o padre Ciríaco a fazer uma descrição dramática dizendo que apenas queria “um confessor para se confessar e dispor de sua consciência por entender que poucas horas tinha de vida”. João Oliveira, por seu turno, foi visto passar pelo sítio da Fonte do Ladrão, picando a égua e dizendo: “anda égua dum cabrão, para me livrares desta ocasião”. Ali foi conhecido por uma tal Reyna que andava segando para Domingos Vaz, a quem contou que “o conhecera muito bem, indo a cavalo em uma égua vermelha, sem capa, nem chapéu, nem espada (…) e lhe disse que ia para Sendim”. Na verdade não tomou o caminho de Sendim mas o de Uva e Palaçoulo, onde o avistaram também, internando-se depois em Castela.
Claro que a inquisição sempre foi muito generosa para os seus fiéis servidores e, por isso, logo que a notícia do caso chegou a Coimbra ordenaram os inquisidores ao comissário Bartolomeu da Cruz (5) “que da parte desta mesa o busque, significando-lhe o nosso sentimento e mandando-lhe acudir com os cirurgiões mais peritos e médicos necessários e medicamentos que uns e outros lhe receitarem e o familiar Manuel Cardoso de Matos (6) concorra com o dinheiro necessário e a seu tempo mandaremos satisfazer o que se houver gastado”. Em resposta, diria o padre Ciríaco que “beijava os pés de Vossas Senhorias pela honra que lhe deram e que se achava já muito melhorado e livre de perigo e a ferida quase sã; e oferecendo-lhe todo o dinheiro que quisesse para satisfazer aos cirurgiões e mais gasto, o não quis aceitar”.
E pouco mais temos a dizer sobre o consequente processo instaurado a João de Oliveira, pelo tribunal do santo ofício de Coimbra, concluído com a sua condenação à morte, queimando-se a sua “estátua”. Logicamente, a “bandeira” com o seu retrato foi pendurada na igreja da terra de sua morada e seria a única que ali ficou depois do célebre roubo dos sambenitos de Carção, de acordo com o testemunho de Maria Cordeira, dizendo:
- Eram muitos, chegavam da parte da epístola até ao altar de Santo António e da outra parte ainda estava um que era de João de Oliveira que queimaram em estátua, que foi o que deu as facadas no padre Ciríaco de Santulhão e foi este que mais tempo ficou na parede da igreja, pois não tinha parentes no lugar. (7)
Notas:
1-Certamente que Ana de Oliveira estava na cadeia de Bragança à espera que se organizasse a leva de prisioneiros para Coimbra. ANTT, inq. Coimbra, pº 1244, de Ana de Oliveira.
2-Em Izeda viviam também os pais de Domingos Oliveira, que foi relaxado, conhecido como o “rabi de Carção”. – NORDESTE, Jornal nº 1117, de 10.4.2018. Catarina de Leão apresentou-se voluntariamente na inquisição de Coimbra em 30.9.1667 – ANTT, inq. Coimbra, pº 6421, de Catarina de Leão. ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo  - Associação Cultural dos Almocreves de Carção, Associação CARAmigo, Junta de Freguesia de Carção e Câmara Municipal de Vimioso, 2008.
3-IDEM, pº 2173, de Catarina Pires, a Lebrata, de alcunha. Saiu condenada em confisco de bens, cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 17.10.1694.
4-IDEM, pº 9411, de João de Oliveira.
5-Bartolomeu Gomes da Cruz era natural de Caminha, reitor da colegiada da igreja de Santa Maria de Bragança. Foi-lhe passada carta de comissário do santo ofício em 1689 – ANTT, Habilitações, mç. 2 doc. 51.
6-Manuel Cardoso de Matos, boticário, morador em Miranda do Douro, casado com Maria Rodrigues, obteve carta de familiar do santo ofício em 1676 – ANTT, Habilitações, mç. 27, doc. 623.
7-IDEM, pº 7503, de Tomás Lopes.

 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães