Batizado em Mogadouro no dia 29 de agosto de 1670, Gaspar era filho de Belchior Fernandes e Beatriz Lopes. O pai, originário de Sanfins da Castanheira, termo de Monforte de Rio Livre, foi morador na Quinta do Vimieiro, Mirandela, de onde passou à vila de Mogadouro, para servir como criado em casa de Francisco Lopes Pereira, cristão-novo, o Papagaio, de alcunha. A mãe era filha natural do mesmo Papagaio e de uma Catarina Martins.
Beatriz nascera em 27.5. 1644 e no assento de batismo ficou escrito: - “Aos 3 dias do mês de Junho de 1644, batizou o padre António Martins a Beatriz, filha de Catarina Martins, cujo pai não sabe…” Se o pai não deu o nome no batismo da filha, a verdade é que desde menina cuidou dela, criando-a em sua casa. E ainda não tinha a Beatriz completado os 13 anos, quando o pai a casou com o seu criado Belchior, no dia 25.4.1657, escrevendo-se no registo de casamento que a noiva era “filha de Francisco Lopes Pereira e Catarina Martins”. E em dote de casamento, o pai deu-lhe a quinta do Souto, também conhecida como a quinta do Papagaio. O novo casal teve 10 filhos, 3 dos quais devemos referir:
1-Maria Lopes, que casou no Mogadouro, com Manuel Lopes Dourado, de uma família cristã-nova bem conhecida na terra e assinalada pela inquisição. Um filho do casal, Gaspar Fernandes Pereira, casaria com uma filha do nosso biografado e seria também preso pelo santo ofício. (1)
2-Beatriz Pereira que casou com André Vareda, de Mogadouro. O casal emigrou para o Brasil, e por lá faleceu o André. Também a Beatriz e alguns de seus filhos, passariam pelas cadeias da inquisição. (2)
3-O terceiro dos filhos é o nosso biografado que, pelos 9/10 anos, falecendo o seu pai, (3) deixou Mogadouro e se foi para o Porto. João Ribeiro, escrivão no Mogadouro, que ensinou o menino Gaspar a ler e escrever, dirá mais tarde que “ia descalço de pé e perna e depois, com muitos cabedais, viera várias vezes a esta vila onde tinha algumas irmãs”. Na verdade, foi rápida a ascensão económica deste homem que, aos 30 anos, se afirmava como “contratador de tabacos e sabões e rendeiro de comendas”.
Como explicar tão rápida ascensão? A dúvida permanece, mas estamos em crer que foi amparado por seu tio Manuel de Aguilar, filho do avô Francisco e sua mulher, Maria Dias.
Como quer que seja, Gaspar L. Costa e Beatriz L. Costa tinham morada estabelecida no Porto, na Ferraria de Baixo, uma boa casa, avaliada em 600 mil réis e bem movimentada de crianças, já que o casal viria a ter 17 filhos. Mas vejam um resumo da vida errante deste empresário, feito pelo próprio:
- Ele se criou no Porto, ficando sem pai na idade de 9 anos e dali foi para Barcelos com o trato dos tabacos e para Vila Real e para Lisboa e assistiu no Algarve, Alentejo e Beira, onde andou por várias terras, sendo administrador dos tabacos, sem domicílio certo, exceto nas vilas de Mogadouro e Viana (do Castelo) e em Compostela e na Corte de Madrid… (4)
Entretanto os esbirros da inquisição iam seguindo os passos de Gaspar e de seus familiares e amigos. E em 1697, um médico, familiar do santo ofício, informava o comissário Tomás de Almeida:
- Em casa de Francisco Lopes Carrança vira em muitas ocasiões, quando entrava a curar na dita casa, ajuntamentos entre os quais o seu genro, Gaspar Lopes (…), Diogo Vaz Faro (…), Manuel Rodrigues (…), o médico Gaspar Dias (…), um irmão do dito médico e o médico Miguel Nunes…
Na mesma altura, perante o mesmo comissário, outro familiar acrescentava:
- Que via entrar em casa de Manuel de Aguilar, contratador de tabacos, a Fernão Dias Fernandes e a seu irmão Gaspar, médico, e a Luís Francisco e a Rodrigo Álvares da Fonseca e a Gaspar Lopes da Costa e a seu sogro, e a Diogo Vaz Faro e a Gaspar Fernandes Lopes.
Em 1702, a inquisição começou a prender membros da família dos Medina, entre eles Joana de Medina, sobrinha de Gaspar da Costa, filha de sua meia-irmã, Beatriz Angel. (5) E este terá começado a sentir o cerco apertar-se em seu redor. E tratou de proteger-se, através de uma operação de limpeza de sangue.
E conseguiu que o juiz de Mogadouro e o vigário geral da comarca despachassem favoravelmente o processo provando que ele era filho de cristãos-velhos, sem gota de sangue judeu. Mas como, se muita gente de Mogadouro se recordava de ver pendurado na igreja o “retrato” do Papagaio que fora queimado pela inquisição como judeu? (6)
Simples: ele conseguiu testemunhas provando que a sua mãe era filha de Catarina Martins e do padre Gonçalo Martins, do Azinhoso, ambos cristãos-velhos. (7) E assim, no livro de registo dos batizados de Mogadouro, foi acrescentada, à margem, a seguinte nota:
- Declaro que o pai de Beatriz que declara este assento foi o padre Gonçalo Martins, da vila do Azinhoso, e por assim estar justificada a filiação por sentença, em caso julgado cuja declaração para que conste a todo o tempo, fiz, por despacho do Dr. Vigário Geral. Mogadouro, 13 de Agosto de 1706.
Pensaria Gaspar que assim, munido com uma certidão de cristão-velho, estava protegido das garras da inquisição.
Entretanto a roda da fortuna também começou a encravar no mudo empresarial de Gaspar Costa. As dívidas à Fazenda Real chegavam aos 32 contos de réis e, por 1710, vivendo em Mogadouro, foi preso e levado para a cadeia de Miranda. Deste processo civil, não temos elementos concretos. Sabemos que saiu em liberdade condicional, como hoje se diz, ficando “preso debaixo de fiéis carcereiros”.
Na tentativa de endireitar os negócios e resolver o problema das dívidas à Fazenda, o nosso contratador mudou-se para Lisboa. E ali, entre os negócios, meteu-se a embarcar pessoas que fugiam da inquisição, ajudado por um cidadão inglês estabelecido em Lisboa, chamado João Cronque. Uma das famílias embarcadas seria a do irmão de sua mulher, João Gomes Carvalho. Este, porém, não se demorou lá e, um mês depois, estava de novo em Lisboa, apresentando-se na inquisição, onde falou de muita gente que fugia para Inglaterra, ajudada pelo seu cunhado, “passador de judeus”. Acusou ainda o cunhado de ter feito uma venda fictícia dos bens que tinha em Mogadouro a Leonor Angélica, sua irmã. (8)
Outras denúncias foram acrescentadas, já que, por aqueles anos, a inquisição fazia larga colheita entre familiares, amigos e conhecidos do nosso biografado, que foi preso em 10.7. 1725. O seu processo é deveras interessante, pois nos mostra a vida de um empresário em constante movimento, deitando mão a todos os negócios possíveis e relacionando-se com gente de toda a parte. Dele vamos apenas olhar o inventário dos bens que possuía em Mogadouro e que poderão ajudar na definição de uma “Rota dos Judeus”:
- Uma morada de casas por baixo da cadeia, com quintal, no valor de 100 mil réis; outra casa, onde mora o prior, também com quintal, avaliada em 80 mil réis; um campo de olival e horta, no sítio do Escorial, todo murado e que valia 500 ou 600 mil réis; a citada quinta do Souto; um campo de vinha e olival no sítio de Santo André.
Escusado será dizer que Gaspar Lopes da Costa acabou confessando-se judeu e ditou 3 belas orações para o processo. Terminou condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto de fé de 13 de outubro de 1726.
NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 8777, de Gaspar Fernandes Pereira.
2-IDEM, pº 9924, de Brites Pereira; pº 7264, de João da Costa Vareda; pº 6540, de António Lopes da Costa.
3-Belchior Fernandes faleceu em Madrid, onde ia regularmente visitar os sogros.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 8766, de Gaspar Lopes da Costa.
5-ANDRADE e GUIMARÃES – Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira, dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, pp. 253-297, Lisboa 2005
6-O “retrato” pendurado na igreja de Mogadouro respeitava a Gaspar Lopes Pereira, tio de Gaspar Lopes da Costa, que foi queimado em 10.5.1682.
7- Na verdade o padre Gonçalo também andou de amores com Catarina Martins e dela teve uma filha que se chamou Apolónia, batizada em 1 outubro de 1653. Mas o padre não a desamparou, antes a levou consigo, a criou e “tratou por filha, coisa que não fez a Beatriz que esta sempre foi tida e havida por filha do Papagaio”.
8- ANTT, inq. Lisboa, pº 8764, de João Gomes Carvalho: - Entende que o dito Gaspar Lopes da Costa lhe deu o dito conselho em razão de ter feito um escrito de venda à dita sua irmã Leonor Angélica para que não sucedesse que lhe apanhassem a dita fazenda por dívidas que devia a el-rei e portanto recear que, se as ditas suas irmãs fossem presas, ele viesse a perder sua fazenda.