NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisco Furtado Mendonça ( n. 22.10.1707)

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Na sociedade brigantina de meados do século XVIII, o Dr. Francisco Furtado Mendonça é figura incontornável. O autor do Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses escreve que ele “chegou a presidente da autarquia”. Cremos que nisso há confusão, já que, em 1741, ele obteve da câmara o cargo de “médico do partido”, um emprego bem remunerado e de grande influência social e política. E esse concurso terá despertado algumas invejas e alimentado algum rancor, nomeadamente da parte de José Álvares da Silva, que era “escrivão dos mantimentos da gente militar” e pensaria na colocação de um médico seu parente e do seu nome, que fora companheiro de estudos de Furtado Mendonça em Coimbra. Aliás, poucos anos depois, com a morte do “médico do partido do hospital militar”, habilitando-se também o Dr. Furtado ao concurso, o mesmo Álvares da Silva conseguiu que ele fosse preterido e disso se vangloriava.
Furtado Mendonça era também médico assistente dos vários conventos da cidade: S. Francisco, S. Bento e Santa Clara, estes dois de freiras e damas da nobreza que neles se recolhiam, normalmente por decisão familiar, para evitar casamentos e dispersão dos bens da família. E, por estranho que pareça, estes espaços, muito especialmente o mosteiro de S. Bento, eram então espaços de animação cultural, sobretudo no que respeita a atividades teatrais. Com efeito, era nos seus palcos que nas épocas festivas (Natal, Páscoa, etc.) se representavam autos e comédias, geralmente de índole cristã e moralizadora mas também de sátira e crítica social.
Pois bem: o autor mais representado nesses palcos era exatamente o nosso médico que para o efeito escreveu autos e “obras métricas que se representaram e foram estimadas e aplaudidas por muitas pessoas que as viram” sobre o nascimento de Cristo, a degolação de João Baptista, o nascimento da Virgem, S. António, S. João… Alguns desses autos eram em prosa, se bem que Barbosa Machado o considere “inclinado à Poesia, sendo o seu genio para a Comica”. De seguida, o mesmo autor indica as suas obras cómicas escritas por Furtado e que eram as seguintes:
* Oriente del Sol màs claro – Auto Sacramental para o Nacimento de Cristo
* Suspirado Y divino Oriente del más hermozo Prodigio – Comedia para o nacimento de Nossa Senhora
* El Dezempeño Nymphatico – Comedia
* Triunfo del fiero amor, Bayle, e os seguintes
* La victoria de Venus
* La disgracia de Lyra
* Zelos aun del ayre abrazam
* El Robo del Vellocimo. (1)
Obviamente que o sucesso de Furtado Mendonça despertava animosidade em gente da nobreza e da governança da cidade, como era o caso de Francisco Bernardo de Figueiredo que era “prezado de poeta mas que com os seus versos não agradava e que os louros só se davam ao réu”. Por isso, aquele terá jurado vingança, “chegando a dizer que o desterraria e faria com que não tornasse a fazer versos nem ter das freiras os aplausos que lhe davam e ele não tinha”.
Animosidade também se notava em António Luís de Morais Madureira Feijó que não via com bons olhos as estreitas relações que sua irmã freira (D. Antónia Maria da Conceição) com o médico poeta.
Relações ainda mais tensas haveria entre ele e a tríade de homens mais poderoso da terra que eram: o Comissário da inquisição, Roque de Sousa Pimentel, abade de Vinhas; o seu irmão, alcaide do castelo de Bragança, Lázaro Jorge Figueiredo Sarmento e o parente de ambos, brigadeiro Francisco Xavier da Veiga Cabral, governador de amas de Trás-os-Montes. As razões assentavam na questão do monopólio do sabão, então criado e que aqueles três homens tinham conseguido para si. Porém, o estabelecimento deste monopólio fazia subir o preço e prejudicava sobretudo os fabricantes de seda, que eram os principais consumidores do produto e o compravam em Espanha. A revolta dos fabricantes de seda alastrou a outros setores da população da cidade, a tal ponto que o povo todo saiu à rua em manifestação ruidosa como nunca se vira. Fantástico! A frente da manifestação seguiam centenas de freiras, que todas nesse dia abandonaram os conventos de S. Bento e Santa Clara e até dormiram fora. Chegados ao castelo, os manifestantes pegaram no sabão que ali estava para ser vendido e atiraram com ele das muralhas. Imagine-se o que terá sido aquele dia 4 de Maio de 1741! O maior da história da cidade, do ponto de vista da mobilização cívica.
Pois bem: o homem que liderou a revolta do povo contra o monopólio do sabão terá sido o avô materno do Dr. Furtado Mendonça e este carregaria a responsabilidade de fazer as freiras sair dos conventos e ir na cabeça da manifestação. Obviamente que, a partir de então, para alguns setores da nobreza e fidalguia da terra, o médico passou a ser o alvo a abater. E que melhor meio haveria do que metê-lo na inquisição?
Foi o que aconteceu. Em 22 de Março de 1747, o Dr. Francisco Furtado Mendonça foi preso por ordem do tribunal de Coimbra, acusado de guardar o sábado em vez do domingo, de fazer o jejum do Kipur, da rainha Ester e outras mais festas dos judeus. De contrário, ele organizou a sua defesa dizendo “que a acusação que se fez contra o réu e outras mais pessoas da nação que foram presas quando ele, foi toda maquinada e forjada pelo ódio e vingança de pessoas cristãs-velhas inimigas capitais do réu e mais cristãos-novos; querendo-se introduzir em bragança o estanque do sabão, por este ser muito prejudicial ao povo e principalmente aos homens da nação, por contratarem em sedas que gastam muito do dito género, impediram estes e muita parte do povo o dito ingresso e também dois conventos de religiosas…” (2)
Não caberá no âmbito deste artigo analisar o processo instaurado na inquisição de Coimbra e que depois transitou para Lisboa. Ele, como aliás, todos os outros processos são de particular interesse para o estudo da sociedade da época e da história da cidade. E um dos aspetos que ressalta é o da representação de óperas. E isto é tanto mais interessante se tivermos em conta que “o primeiro teatro público de ópera” apenas surgira em 1637, na cidade de Veneza, em Itália – o teatro San Cassiano. Pois em Bragança temos notícia de um espetáculo de ópera realizado no verão de 1743, para receber o novo bispo da diocese. E sabemos que num dos anos seguintes se apresentou outra na festa de Santo António, conforme se lê no processo de Jerónimo José Ramos, de Vinhais, preso em 1.7.1749:
- Indo o réu movido de sua curiosidade foi ver uma ópera que na festividade de S. António se fez na cidade de Bragança (…) se travaram de razões a respeito dos assentos…(3)
Quem seria o(s) autor(es) do texto e da música, bem como o ensaiador e os figurantes? Haveria ali o dedo do médico poeta Francisco Furtado Mendonça?
NOTAS:
1-MACHADO, Diogo Barbosa – Bibliotheca Lusitana, tomo II, Atlântida Editora, p. 156, Coimbra, 1966.
2-ANTT, inquisição de Lisboa, processo 10635, de Francisco furtado Mendonça.
3-ANTT, Inquisição de Lisboa, pº 2447, de Jerónimo José Ramos.

Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães