Nesta semana realiza-se em Bragança um Congresso Internacional de Cultura Judaica. Trata-se de um acontecimento de transcendente importância. Sobreleva ainda a qualidade dos intervenientes anunciados, tando os nacionais como os estrangeiros.
Antes de mais, devemos dar os parabéns aos organizadores, particularmente à Câmara Municipal de Bragança. E também à Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, da Universidade de Lisboa, responsável pela coordenação técnica científica do congresso.
Mais ainda pelo trabalho que a mesma Cátedra vem desenvolvendo desde os anos 90 do século passado no domínio da investigação e divulgação da problemática marrana e sefardita. Não podiam, pois, os signatários alhear-se de um tal acontecimento, uma vez que, desde há 18 anos se vêm dedicando à publicação de trabalhos sobre a matéria.
Com efeito, em 15.4.1999, no jornal “Terra Quente” abriram uma página com o título: “Caminhos Trasmontanos de Judeus e Marranos”. Ao longo mais de 14 anos, a página manteve-se aberta publicando-se mais de três centenas de textos.
Em simultâneo, em variadas revistas, foram publicando textos de maior fôlego sobre a matéria, bem como uma dezena de livros, referentes a uma grande parte dos municípios do Nordeste trasmontano.
A página do “Terra Quente” fechou-se por alterações provocadas na propriedade e orientação do jornal. Em Junho de 2016, nova página se abriu, agora no semanário “Nordeste” que se publica em Bragança, desta vez com o título: “Nós, Trasmontanos, Sefarditas e marranos”.
Fundamentalmente o trabalho foi e é baseado na leitura, transcrição e estudo de processos da inquisição portuguesa. Mais de um milhar até agora!
É um trabalho para nós aliciante e que consideramos fundamental não só para o estudo da cultura judaica e marrana, mas também da história local e regional. Nenhuma espécie de acontecimentos marcou mais profundamente o evoluir da sociedade trasmontana do que as constantes vagas de prisões, seguidas ou antecedidas de fugas massivas de “gente da nação” com a paralisação dos negócios, a ruína das empresas e a saída de capitais.
Verdadeiros “tsunamis” arrasaram povoações, como aconteceu em Mogadouro onde, num único dia, se passaram mandados de prisão sobre umas 120 pessoas, metade das quais foram arrastadas para as masmorras da inquisição e a outra metade conseguiu fugir.
Ou em Quintela de Lampaças, onde no dia 13.12.1637 foram mandadas prender 19 de entre os 23 apontados como “judeus”, e enviada ao santo ofício uma lista de outros 41 que se anteciparam na fuga.
Em Mirandela, uma lista de decretados a prisão em Maio de 1662, incluía 78 cristãos-novos, entre eles o pai do dr. Francisco da Fonseca Henriques, médico do rei D. João V.
Em Sambade, Carção, Vinhais, Vila Flor… as “entradas” da inquisição fizeram soltar tempestades de medos e ódios que penetraram profundamente no tecido social e o destruíram. Foi como se todas as forças do inferno se abatessem sobre as comunidades de “gente da nação”.
Se perguntarmos qual o dia mais importante na história de Bragança, a generalidade das pessoas não hesitará em dizer que foi o dia 20 de fevereiro de 1464, quando foi elevada à categoria de cidade. Por nós consideramos que foi 4 de maio de 1741, o dia em que o povo de Bragança de mobilizou em uma fantástica manifestação, à frente da qual seguiram centenas de “freiras” dos dois conventos, em protesto contra o monopólio do sabão entregue à tríade familiar mais poderosa da terra, constituída pelo alcaide do castelo, o comissário local da inquisição e o comandante militar.
O monopólio do sabão prejudicava essencialmente “a gente da nação”, fabricantes de sedas. A multidão de povo, pelos hebreus mobilizada, subiu ao castelo e atirou pelas muralhas o sabão do monopólio que ali se encontrava para venda. Onde é que se viu tamanha ousadia em tais tempos? Quem aponta uma tão intensa jornada de mobilização cívica, em tempos do antigo regime? Que episódio da luta de classes poderá comparar-se-lhe? Claro que de seguida, foi um arraso: centenas de homens e mulheres “metidos na inquisição”.
Parecidos “tsunamis” assolaram Vinhais, Miranda do Douro, Vila Flor, Chacim, Torre de Moncorvo… e tantas outras terras Trasmontanas. O atraso e o despovoamento de Trás-os-Montes terá começado exatamente aí, com a decapitação do elemento mais instruído e mais empreendedor da sociedade.
Sim: os processos da inquisição mostram-nos que os lagares de azeite e os moinhos de pão se encontravam predominantemente em mãos da “gente da nação”. Constatámos isso em Mirandela, Torre de Moncorvo e Quintela de Lampaças, nomeadamente.
O mesmo acontecia com a indústria “hoteleira”. Em Bragança, Miranda do Douro, Torre de Moncorvo, Vila Flor… vimos a inquisição prender estalajadeiros e constatámos que as estalagens eram os grandes centros difusores de notícias, locais de contactos empresariais e bolsas de negócios.
As grandes “unidades industriais” foram instaladas por eles. Em Freixo de Numão, por exemplo, assistimos à prisão do proprietário de uma destilaria de aguardente montada no sítio do Vale da Cabra, Alijó, que valia um conto e 200 mil réis, de onde saíam anualmente mais de 50 pipas de aguardente para a exportação.
O sumagre era então um dos produtos que mais pesava na balança comercial portuguesa. Pela barra do Porto anos havia em que saíam para o Norte da Europa mais barcos carregados daquele produto do que de vinho. E a grande região produtora era o Alto Douro. Também essa indústria corria por mãos de hebreus, como o provam as atafonas que encontramos nos inventários de prisioneiros, de Carção a Vila Flor, de Lebução e Vinhais a Foz Côa a Freixo de Espada à Cinta…
Que dizer da produção de linho cânhamo? Em Mirandela, nem a Casa dos Távoras superava o hebreu Dr. Manuel Pereira da Fonseca que, em 1693, produzia 360 pedras de linho. Em Torre de Moncorvo eram “judeus” que faziam andar a real fábrica de cordoaria.
Da indústria das sedas, nem precisamos falar. A Rua Direita de Bragança era verdadeiro complexo industrial sericícola, com cerca de duas dezenas de oficinas, todas pertencentes a hebreus. Chacim, Vila Flor, Lebução, Vinhais, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta… seguiam progressivas no fabrico de sedas.
Mais nobre ainda e engrandecedora será a galeria de economistas como Francisco Vaz Eminente, cujo nome ficou ligado ao imposto alfandegário aprovado por Filipe IV; advogados como André Nunes ou António Manuel Pissarro; pensadores, como Baltasar Oróbio de Castro; banqueiros como Manuel Cortiços, Rafael Henriques ou António Rodrigues Mogadouro; diplomatas como Manuel Fernandes Vila Real; médicos como o Dr. Mirandela, Jacob de Castro Sarmento ou Efraim Bueno, o Fastio, de alcunha, que mereceu ser retratado por Rembrandt.
Porém, a coisa mais importante que em Trás-os-Montes a gente marrana deixou de herança encontrar-se-á no mundo da genética, das tradições, da etnologia e da gastronomia.
Se a história de Trás-os-Montes precisa ser reescrita, contando-se as grandezas e misérias do elemento hebreu da sociedade, ela mesma deverá, por outro lado, ser tida em conta na promoção do progresso e do futuro, nomeadamente nas áreas do turismo e da cultura. Foi esse o objetivo que nos levou a abrir as ditas páginas dos jornais “Terra Quente” e “Nordeste” – o de traçar uma Rota dos Judeus em Trás-os-Montes.
Um dos primeiros livros que publicámos foi em 2008, com o título de “Carção Capital do Marranismo”. Nele ficou evidenciada a noção de “marranismo” (diferente de judaísmo) e descrita a Rota local que, graças ao esforço da gente de Carção (permitam que cite o nome do Prof. Paulo Lopes) foi engrandecida com a inauguração do “Museu Marrano”, a primeira obra do género em Trás-os-Montes!
Obviamente que os turistas se não deslocam de Inglaterra ou França para visitar uma aldeia e um pequeno museu. Nem tão pouco de Lisboa ou Porto. Mas sempre pensámos que atrás de Carção, outros museus e centros de documentação iriam abrir-se, numa Rota dos Judeus em Trás-os-Montes. Sim, Trás-os-Montes possui um fantástico património judaico e marrano para mostrar ao mundo.
Passou há 2 anos o 3º centenário do nascimento de Jacob Rodrigues Pereira, o grande mestre da alfabetização dos surdos-mudos, possivelmente o Trasmontano e Sefardita mais conhecido no mundo. Talvez mais conhecido lá fora do que em Trás-os-Montes, terra de suas origens. E nós nem sequer um lápide conseguimos descerrar, comemorando a efeméride!
Hoje a sua descendência em França representa mais de 400 membros, segundo informação do nosso amigo e estudioso, Dr. António Cravo, “distribuídos pelo mundo dos negócios, em bancos, companhias de seguros e empresas imobiliárias”. Será que algum dia, a algum deles chegou algum apelo da terra Trasmontana? A nós cumpre a responsabilidade de pedir perdão pelos malefícios da inquisição e fazer o convite aos descendentes dos perseguidos para que venham conhecer a nossa casa comum.
E os descendentes de milhares de homens e mulheres que deixaram Trás-os-Montes por causa da inquisição e foram dar vida a chãos estranhos?
Diz-se que muitos deles levaram a chave de casa, com ideias de um dia voltar. Pois, daqui lançamos o apelo a que voltem. A Casa Trasmontana espera por eles.
Muito do nosso trabalho de investigação foi feito por solicitação de um conhecido arquiteto canadiano cujo pai morreu sob os céus de Varsóvia quando o seu avião foi abatido pelos nazis na segunda grande guerra. Tal investigação teve (e continua a ter) por objetivo a descoberta e conhecimento de seus ascendentes, em terras Americanas e Europeias, no âmbito de um “Genome Project”. Não imaginam a sua emoção quando, em visita de estudo e romagem, chegou a Miranda do Douro, à Rua da Costanilha. No próprio dia nos enviou um e-mail dizendo o seguinte:
- Cerca de 366 anos depois, às 7 horas e 33 minutos do dia 7 de Junho de 2011, cheguei ao lugar de onde partiu o meu primeiro ascendente de nome Henriques, que chegou à Jamaica.
Nos últimos anos algumas iniciativas são de assinalar no domínio da investigação das nossas raízes judaicas e cultura marrana, assinalando-se a realização de Jornadas em Vimioso, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo… e agora um Congresso Internacional em Bragança, acompanhado da abertura de dois espaços museológicos e de interpretação da cultura judaica. Esperamos que seja um grande passo na construção de uma grande Rota dos Judeus em Trás-os-Montes.
NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Em volta do Congresso Internacional de Cultura judaica
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães