NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Domingos de Oliveira (Izeda, 1645 - Coimbra, 1696)

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Num aglomerado populacional pequeno e remoto, como era Carção no século XVII, o papel do barbeiro era muito importante e para exercitar a função era necessário ser encartado por alvará régio, antecedido de exame após longa aprendizagem com um mestre. E a função do barbeiro não se limitava, como hoje, a cortar cabelo e barba. Competia-lhe também fazer sangrias, aplicar mezinhas e outros curativos, coisas que hoje pertenceriam a um enfermeiro.
Nascido em Izeda, Domingos Oliveira foi levado em criança para Carção onde os pais e avós o terão iniciado no judaísmo. Jovem ainda, rumou a Castela, fixando-se no lugar de Pobladura d´el-Valle, terra de Benavente, onde assistiu 6 ou 7 anos.
Não sabemos se foi em Carção ou Castela que aprendeu a barbeiro e supomos que fosse a oportunidade de exercer o ofício que o fez regressar a Carção. Vivia-se ali, ao tempo, um clima de terror, com a aldeia a ser varrida por uma vaga de prisões lançada pela inquisição. Tal como o pai, a mãe e os dois irmãos mais velhos, Domingos tomou então a iniciativa de se ir apresentar no tribunal de Coimbra, onde chegou no dia 22.10.1667. Depois de ouvido, foi mandado regressar a Carção, sendo chamado depois para ser reconciliado no auto da fé de 14.6.1671, em cárcere e hábito que lhe foi tirado depois de abjurar. (1)
Regressado a Carção e contando já uns 26 anos, Domingos decidiu casar, com sua prima Maria da Costa. Para isso necessitava de dispensa papal, que podia mandar pedir. Decidiu, porém, ir ele próprio a Roma buscá-la. Durou a viagem mais de meio ano, aproveitando ele para visitar muitas terras e comunidades hebreias, de França e Itália, (2) muito especialmente a cidade de Livorno onde terá permanecido mais tempo, com frequência da sinagoga e instrução específica na lei de Moisés. De Livorno terá trazido um livro de orações e textos bíblicos, com uma “tabuada perpétua” que lhe permitia saber o calendário judaico das festas e dias de jejuns.
António Ortuño, um mercador castelhano estabelecido em Bragança, depois de contar que foi a casa de Baltasar Oliveira a vender ferro, acrescentou:
- Seu filho disse a ele confitente se queria ouvir e ver um livro, que havia de folgar de ver que trouxera de Livorno (…) e dizendo ele confitente que sim, tirando o dito Domingos Oliveira do forro dos calções um livro de meio quarto, com 3 dedos de altura e abrindo-o leu nele algumas orações, uma das quais se chamava Shemá e outra Midá e outra sacrifício de Abraão… (3)
Depois que o santo ofício entrara em Carção, nos anos 60, a terra parecia vacinada contra a heresia judaica. Porém, 20 anos mais tarde, ao final da década de 80, começaram a chegar a Coimbra notícias alarmantes, dando conta do extraordinário crescimento religião mosaica. E Domingos de Oliveira era geralmente apontado como sendo o oficiante das cerimónias realizadas em casas diversas, feitas “sinagogas de judeus”. Dizia-se até que ele celebrava missa judaica na capela de Santo Estêvão!...
No seguimento daquelas notícias e de um processo de averiguações conduzido pelo comissário da inquisição Bartolomeu Gomes da Cruz, (4) prior da matriz de S. Maria, de Bragança, começou nova operação, com o rolo compressor da inquisição a esmagar a comunidade hebreia de Carção. A primeira leva aconteceu em Junho de 1691, com a prisão de 10 pessoas, que foram conduzidas a Coimbra.
Domingos não esperou que o prendessem. Abalou para Espanha. E, acaso por não conseguir licença ou clientela para o exercício da profissão de barbeiro, fez-se mercador de açúcares que vinha buscar ao lado de cá da fronteira para vender em Castela. Provavelmente negociava em ligação com familiares seus de Mogadouro e Azinhoso.
Entretanto, na inquisição de Coimbra as denúncias no processo de Domingos iam-se avolumando. Veja-se uma delas, relatando a celebração do dia do Kipur de 1688, feita por João Rodrigues:
- Sendo pelas 10 horas da noite foi a casa de Clara Lopes, viúva e vigiando por um buraco da porta viu estar uma mesa baixa coberta por uma toalha branca com 2 castiçais tendo cada um uma vela amarela, apagados, (…) e sobre a dita mesa uma albarrada (vaso) de estanho e um pedaço de pão e na dita casa estava uma candeia de granado acesa e nela estavam (…) de joelhos diante da dita mesa e os mais e alevantando-se este (Domingos Oliveira) pegara na dita albarrada e a levantara sobre a cabeça e disse para os mais que não cressem nos santos de lá que eram santos de pau e logo pusera a dita albarrada sobre a mesa…
Se a noite do Kipur de 1688 foi assim celebrada em casa de Clara Lopes por um grupo alargado e presidindo Domingos Oliveira, já o de 89 seria em casa deste, para onde foram vistas entrar algumas pessoas pela porta das traseiras. A propósito, contou o padre Manuel Ochoa:
- Domingos Oliveira, barbeiro, tinha um livro que trouxera de Livorno pelo qual ensinava a lei de Moisés a todos os cristãos-novos do dito lugar e que era mestre de cerimónias e que ouvira dizer ao padre Sebastião Vaz que no dia grande estivera fechado em sua casa com Clara Lopes e Maria Fernandes ensinando-lhes as rezas do livro.
Da tal missa na capela de S. Estêvão não temos qualquer relato, antes a afirmação de muitas testemunhas dizendo que era voz pública a sua realização. (5)
Por 1687, faleceu sua mulher e a Coimbra chegaram informações, como esta, produzida por Maria de Morais:
- Disse que estava em casa do réu quando morreu Maria da Costa e ele lançara as pessoas fora e esteve cerca de 2 horas sozinho com a defunta e ela se veio para casa e presume que era cerimónia judaica.
Miguel Fernandes, contou que se encontrara na rua uns dias depois com Domingos e este lhe deu “um bacalhau e uns poucos de ovos e um ou dois tostões para fazer um ou dois jejuns judaicos…”
Uns 3 anos depois, morreu o pai de Domingos e apareceram testemunhas a dizer que este, durante 9 dias manteve uma candeia acesa no quarto dizendo “que a alma do defunto vinha ali descansar naquela cama” e que durante um ano Domingos não comera carne e que pagara 4 tostões às pessoas que faziam jejuns judaicos por alma do pai.
Não vamos continuar o relato das dezenas de denúncias feitas contra o nosso biografado. Vamos antes a Castela, ao lugar de Corposário, para onde fugira, pelo verão de 1691. Terrível acidente: ao passar junto a uma igreja caiu-lhe em cima o badalo de um sino. Pensou-se que o homem morria e logo veio um emissário ao Azinhoso a casa do irmão buscar a mortalha que havia de vestir, que seria amortalhado ao modo judaico. Felizmente que não morreu. Acrescentemos, porém, que no Azinhoso estaria já então desposado para casar com Inês Lopes da qual tinha um filho de tenra idade.
Entretanto e porque em outubro de 1691 a inquisição decretara a prisão de Domingos Oliveira, os comissários, familiares da inquisição e as autoridades… todos andavam vigilantes pela zona da fronteira. Efetivamente foi preso pelas milícias de Penas Roias, em 15.10.1692, junto à fronteira, na região de Lagoaça, onde viera buscar mercadoria para vender em Castela.
Se as denúncias na inquisição de Coimbra eram muitas e de extrema gravidade, a defesa de Domingos foi verdadeiramente desastrosa. Imagine-se: perguntado sobre o livro, respondeu que não sabia ler, quando as testemunhas por ele indicadas diziam exatamente o contrário! Perguntado sobre a “missa judaica” celebrada na capela de Santo Estêvão, respondeu que, ao contrário, ele era mordomo da mesma e que até trouxera de Roma um breve papal concedendo indulgências a quem visitasse a mesma capela. (6)
Domingos terminou os seus dias queimado nas fogueiras do auto da fé celebrado em 25.11.1696.
Notas:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 2865, de Domingos de Oliveira.
2-IDEM - Veja-se o itinerário seguido: - Rio Seco, Vitória, Pamplona que fica na fronteira, com Foix, reino de França e dali passando a Carcassone foi para Montpellier a Marselha onde embarcou para Viareggio, porto de Itália, de onde passou a Roma onde, fazendo o seu negócio só com a dilação de uma doença que ali teve em que tudo gastou 3 meses, se voltou pelas mesmas terras. – Note-se que ele omitiu a estada em Livorno, Bayonne, estas no regresso.
3-IDEM – Francisco Cardoso, seu cunhado, casado com Domingas de Oliveira, fez a seguinte descrição do mesmo livro: - Era ainda novo, dourado por fora e de folhas vermelhas, que seria ao modo de ripanço (breviário) e chegando a par dele viu letras vermelhas e pretas e não pôde ler por lhe parecerem estrangeiras…
4-Bartolomeu Gomes da Cruz obteve provisão de comissário em 3.1.1689 – TSO, Conselho Geral, Habilitações, mç. 2, doc. 51.
5-ANTT, inq. Coimbra, pº 2865. Testemunho de Gaspar Luís: - Por ele testemunha duvidar que o dito Domingos Oliveira dissera missa sendo secular, respondeu então a dita Francisca Lopes que o dito Domingos Oliveira sim dissera missa na ermida de Santo Estêvão que para tudo havia jeito e também (…) tinham assistido Baltasar Lopes, Francisco Rodrigues…
6-IDEM - Disse que trouxe de Roma breves para se celebrarem festas com jubileus, como foi para a Santa Rainha e para Santo Estêvão e para ser privilegiado o altar do Santo Cristo de Carção, trazendo agnus dei e outras muitas relíquias e crónicas de santos que deu pelo dito lugar, com que era muito conhecida a sua piedade cristã.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães