Nasceu na vila de Mogadouro pelo ano de 1665. O pai chamou-se Belchior Fernandes e era “caseiro” na quinta do Vimieiro, termo da Torre de Dona Chama, Mirandela, de onde foi para Mogadouro casar com Beatriz Lopes. Esta era filha natural de uma Catarina Martins e de Francisco Lopes Pereira, o Papagaio, de alcunha, mercador, casado com Maria Dias. Embora fosse filha natural, o pai nunca a desamparou e sempre a reconheceu e tratou como filha e a casou e lhe deixou em herança as casas e propriedades que tinha em Mogadouro, nomeadamente uma Quinta que ainda hoje é conhecida pelo nome de Quinta da Papagaia e então se nomeava Quinta do Souto. (1) Para sua casa, a trabalhar com ele, entrou até o “genro” Belchior. E quando Francisco Lopes Pereira, por 1654, foi para Madrid, Belchior acompanhou-o. E em Madrid, no hospital real, este acabaria mesmo por falecer.
Criada em Mogadouro, (2) contando cerca de 20 anos, Beatriz Pereira foi para Castela onde casou com André Vareda, que ela tinha na conta de cristão-velho. Em volta deste homem há, no entanto, uma verdadeira nebulosa. Uns dizem que é natural de Roma, outros de Pádua e Gaspar Lopes da Costa, irmão de Beatriz afirma que ele era natural da vila de Mogadouro.
Facto é que, a vida de Beatriz e Vareda foi um constante peregrinar de terra em terra. E se por 1685 ela estava ainda solteira e “órfã de pai e mãe” a viver no Mogadouro, já em 1690 aparece casada, ocasionalmente “assistindo” em Lisboa onde lhe nasceu o filho José da Costa. Três anos depois morava em Castela, na cidade de Cádis onde nasceu o filho João de Vareda. Por 1698 viajava pela cidade do Porto, “pousando” em casa de sua cunhada Beatriz Lopes da Costa a quem foi pedir 4 000 cruzados, que esta recusou emprestar-lhe. No ano seguinte estava ocasionalmente em Lisboa, hospedada em “uma estalagem junto às Portas do Mar”. Teria então casa montada em Badajoz onde, pelo ano de 1700, Brites Pereira deu à luz a filha Luísa Maria Rosa. Quatro anos mais tarde a terra de morada era Viana do Castelo onde nasceu o filho António Lopes da Costa. Passou de novo pela cidade do Porto “pousando” então em casa de seu irmão Gaspar Lopes da Costa.
A partir dessa altura, fixariam residência em Lisboa, na freguesia de Santo Estêvão, e pelo ano de 1713 / 1714, sofreria dois grandes desgostos. Um deles foi a morte de seu marido e o outro derivou da prisão do filho João da Costa ou Vareda (3) pelo tribunal do santo ofício.
Os anos seguintes foram para ela de alguma dificuldade económica e grande perturbação religiosa, vendo-se Beatriz seguir a pé, descalça, em procissões e romarias cristãs ou metida nas igrejas a rezar, o que muito escandalizava os seus correligionários. E acontecendo adoecer-lhe uma filha, Beatriz não se atrevia a ir ter com sua “tia” Beatriz Pereira Angel, filha do Papagaio e de sua mulher, (4) a qual era rica e morava em Lisboa. E indo pedir apoio a D. Paula Manuela, esta respondeu:
- Como queria ela que a dita sua tia Beatriz Pereira a socorresse quando cada dia lhe iam dizer várias pessoas que a encontravam fazendo romarias, descalça, à Madre de Deus, ora estando encomendando-se ao Menino Deus?
Argumentou primeiro que fazia aquelas coisas de cristã “para remir a miséria e vexação em que se achava”. Depois emendou e disse “que ela fazia as romarias para ser bem reputada da sua vizinhança”. Facto é que a tia a socorreu “pois dali por diante, ainda que a dita tia Brites Pereira Angel a não queria ver, lhe mandava assistir na doença da dita sua filha Luísa Maria Rosa, com médico, botica e meia galinha cada dia e lhe prometeu que lhe fazia os gastos do enterro se a mesma falecesse”.
Não sabemos se foram as dificuldades económicas que, por 1717, a levaram a mudar-se para Chelas, a viver em uma quinta, duas léguas distante de Lisboa, servindo ela e a filha em casa de D. Maria Bernarda de Vilhena.
Em 15 de Maio de 1719, embarcou com a mesma filha (Luísa Maria) para o Brasil, aportando na cidade da Baía em Julho e seguindo a morar na roça e casa do filho José da Costa. A viagem foi no navio Santo António de Pádua, dirigido pelo capitão António Antunes de Araújo.
Ali viveu por 7 anos e meio, até ser presa pelo santo ofício, dando entrada na cadeia de Lisboa em 22.11.1726. Começou por negar as culpas de judaísmo que lhe imputavam mas acabou por confessar que fora doutrinada quando tinha uns 20 anos, em Mogadouro, antes de ir para Castela, por Francisco Lopes, (5) mercador, casado com Leonor Dias. Depois, em Cádis, uma Isabel Vargas, originária de Vila Real continuaria a sua doutrinação judaica.
O processo de Beatriz tem algum interesse para o estudo do urbanismo da vila de Mogadouro. Veja-se, nomeadamente a informação que nos dá sobre as casas de sua morada sitas “abaixo da cadeia, que tinham quintal e dois poços, e pela parte donde ficava a cadeia partiam com casas de um irmão dela, Gaspar Lopes da Costa e da outra parte com umas casas caídas que haviam sido de duas pessoas da nação, e que o quintal partia com outro de Maria Machada”.
Igualmente interessante para o estudo da comunidade marrana da Baía que se juntava em grupos familiares alargados para a celebração do Kipur. Neste caso, no ano de 1719, por exemplo, em casa de José da Costa e Ana de Miranda, sua mulher, juntaram-se: Beatriz Pereira, Gaspar Fernandes, Luísa Maria, João Gomes Carvalho, António Lopes, Carlos Pereira, Gaspar da Costa e Miguel Nunes, que todos os 10 ali permaneceram todo o dia, conforme testemunho de Ana de Miranda, transcrito no processo da sogra, Beatriz Pereira.
Sobre o inventário de seus bens, para além da casa e da Quinta da Papagaia atrás referida, vejam a rúbrica seguinte, deveras interessante para se fazer um retrato da sociedade esclavagista da época:
- Tem uma escrava chamada Teresa Pereira, que terá 13 anos, a qual mandou vir de Angola com outra mais que mandou vir da Costa da Mina e faleceu, para com elas pagar uma dívida de cem mil réis a uma filha de D. Lourença de Soto Maior chamada D. Maria Bernarda de Vilhena, assistente nesta cidade (…) em razão de lhos haver emprestado sobre sua palavra, e lhe dizer, quando ela declarante foi para a baía, que dos cem mil réis, lhe mandasse duas escravas pequenas, e declara que a escrava que faleceu estava já por conta da dita credora e portanto é a mesma que perde, e a outra escrava a mandou ensinar a fazer rendas e estava com ânimo de a remeter.
Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 8766, de Gaspar Lopes da Costa; inq. Coimbra, pº 6790, de Francisco Lopes Pereira. ANDRADE e GUIMARÃES – Nós Trasmontano… jornal Nordeste nº 1082, de 8.8.2017 e n º 1090, de 3.10.2017.
2-Ao falar da sua genealogia, o filho João Vareda disse que sua mãe era “castelhana, não sabe onde nasceu, mas criou-se em Madrid” – informação da Drª Carla Vieira, a quem agradecemos.
3-IDEM, pº 7264, de João Vareda. Por 1712, em Lisboa, fazia “contas mui grossas e importantes” para um “judeu de sinal chamado D. Joseph Cortiços” que se encontrava em lisboa reclamando o pagamento de dívidas da fazenda Real “e lhe ficou muito obrigado o dito Cortiços, pela clareza e brevidade com que lhas fez (…) e vendo-se ele declarante nesta Corte pobre e desempregado e destituído de meios com que se pudesse sustentar, se resolveu passar para Holanda; e chegando a Roterdão, esteve ali 5 dias e passados eles, foi para Londres onde se encontrou com o dito judeu Cortiços que nos primeiros tempos da sua assistência o socorreu com alguma coisa e depois o desamparou…” Depois de processado, João voltou para Inglaterra onde vivia, casado com uma sobrinha de Luís Álvares de Oliveira.
4-IDEM, pº 8338, de Beatriz Pereira Angel; ANDRADE e GUIMARÃES – Nós Trasmontanos… jornal Nordeste nº 1084, de 22.8.2017.
5-Francisco Lopes terá o sobrenome Oliveira e será filho de Baltasar Lopes de Oliveira, irmão de Belchior Lopes, morador em Carção e “procurador” da firma dos Mogadouro em terras do Nordeste Trasmontano. ANDRADE e GUIMARÃES – Carção Capital do Marranismo, Bragança, 2008.