Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - André Garcia de Miranda (n. Bragança, 1673)

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André Garcia de Miranda era filho de Gaspar Garcia e Leonor Nunes de Miranda. Como o sobrenome indica, a família era originária de Miranda do Douro, cidade onde viveram os seus avós: Pedro de Miranda e Ventura Nunes. E foram as cerimónias e ritos judaicos em volta da morte e amortalhamento de Pedro Miranda, por 1635, que originaram a maior parte das denúncias feitas perante o licenciado Diogo de Sousa, inquisidor de Coimbra, na visitação que fez à cidade de Miranda em fevereiro de 1638 e levaram mais tarde à prisão de Ventura Nunes.(1)

Não sabemos se Leonor Nunes nasceu antes ou depois da morte de seu pai. Sabemos é que por 1652 ela já vivia em Bragança e estava casada com Gaspar. Em 1664, ela e o marido foram apresentar-se na inquisição de Coimbra, sendo mandados regressar a casa.(2)

Em Bragança, por 1673, nasceu André Garcia de Miranda, que cedo começaria a correr mundo, a mercadejar, internando-se por Castela, assistindo nas cidades de Madrid, Valhadolid, Rio Seco, Medina del Campo… Em Portugal, disse que conhecia “a maior parte das cidades e vilas”.

No ano de 1694 ainda morava naquela cidade trasmontana, sendo eleito mordomo da confraria de Nossa Senhora da Rosa, sita na igreja de Santa Maria, conforme registo no competente livro, folha 141:

— Aos 6 de Setembro de 1694, nesta igreja de Santa Maria, aonde está a dita confraria de Nossa Senhora da Rosa, aí em mesa, se fez eleição dos oficiais que haviam de servir a dita confraria e foram eleitos para juiz Manuel George; para mordomos André Garcia e António Rodrigues Chisme; para escrivão o padre Francisco Pires e para procurador António de Afonseca, tecelão de veludo…(3)

Aos 30 anos, quando a inquisição o prendeu, André continuava solteiro e a trabalhar por conta do pai, “um velho que se ocupava de rendas e mandava fazendas para fora do reino”, então residente em Lisboa, na Fancaria de Cima. Uma das culpas que lançaram, e a principal, referia-se à celebração do Kipur (a maior festa do calendário judaico) no ano de 1699, em casa de Alexandre Pimentel onde se juntou um grupo de cristãos-novos Brigantinos moradores na capital e aparentados entre si, a saber:

— Eliseu Pimentel, irmão deste, administrador das cartas de jogar e solimão (…); e dois filhos de Alexandre Pimentel (João e António); e Manuel da Costa Miranda, parente dos ditos Pimentel, morador na Correaria; e Alexandre da Costa Miranda, irmão do dito Manuel, que embarca fazendas para fora; e outro irmão dos mesmos, chamado Domingos da Costa Miranda, contratador; e António de Morais, parente dos mesmos, homem preto, más cores, homem doente; e André Garcia de Miranda, parente dos mesmos; e João da Costa Vila Real, torcedor de sedas a Mata Porcos, natural de Bragança; e com um sobrinho do mesmo…(4)

Resta dizer que Domingos da Costa Miranda era casado com Filipa Garcia, irmã de André e que o casal tinha já uns 7 filhos. Ambos seriam presos de seguida.(5)

André tinha outra irmã, chamada Isabel Nunes, então com 45 anos, a qual era já viúva e mãe de 3 filhos. Ela e os dois mais velhos, seriam também processados pelo santo ofício logo em seguida.(6)

Fiquemos agora com o nosso biografado, que “se ocupava de rendas e de mandar fazendas para fora do reino”, por conta do pai “que se acha já velho e não pode escrever”. Significa isto que o devemos incluir na classe dos rendeiros, uma classe prestigiada e necessariamente endinheirada. Para além de rendeiro, André seria um importador/exportador e a sua rota comercial ligá-lo-ia essencialmente ao Brasil, de onde importava açúcar e tabaco, entre outras mercadorias. Uma parte era vendida no reino, a retalhistas, e outra parte era encaminhada para Castela. Ali, o seu correspondente chamava-se João Garcia de Guinea, que, por seu turno, lhe remetia fazendas, referindo-se estamenhas, sedas, tafetás...

Ignoramos quem fosse este João Garcia de Guinea, colocando, no entanto, a hipótese de serem parentes, dado que na generalidade as redes comerciais eram de natureza familiar. Na rede de distribuição de tabaco na região de Zamora – Salamanca dominava Gabriel Sola, originário da Guarda, e também para ele o nosso biografado despachava “partidas de tabaco em folha”, o que causava rivalidades com outros fornecedores/distribuidores como era o caso de um João Dias Pereira, de Lebução, termo de Chaves.

No mundo dos negócios aconteciam percalços, muito em particular tratando-se de mercadorias e transportes marítimos e fluviais. Por isso as taxas cobradas pelos seguradores eram particularmente elevadas, acima de 15% sobre o valor segurado.

Em determinada altura André Garcia e o cunhado Domingos da Costa Miranda procederam à importação de dois barcos de açúcar do Brasil. E a empresa proprietária barcos, assim como a seguradora pertenciam aos Dias Fernandes, cristãos-novos originários de Muxagata/Freixo de Numão. A mercadoria foi desalfandegada na cidade do Porto e uma parte foi metida em barcos, seguindo pelo rio Douro até ao porto de Foz Tua, de onde seria transportada em bestas ou carros de bois, para Bragança. Aconteceu que um dos barcos se perdeu em um ponto do rio e… segurados e seguradores andaram em demandas na justiça, já que estes se negavam a pagar os prejuízos, lançando a suspeita de perda fraudulenta dos açúcares. O caso foi resolvido na justiça. Mas ficaram ódios, como consta da confissão de Fernando Dias Fernandes:

— Vindo a esta cidade, dali a alguns meses o dito Alexandre da Costa Miranda, com outro seu parente a fazer o mesmo negócio de açúcares e carregá-los também pelo Douro  acima  de que ele testemunha lhe fez a apólice não quiseram que lhes segurasse  o réu  e seu tio Luís Fernandes  dizendo que não queriam nada com essa canalha.(7)  

Este episódio, bem interessante para o estudo das comunicações em Trás-os-Montes, foi apresentado por ele aos inquisidores e é uma das contraditas do processo. Este é um processo normal, em que o réu começa por negar tudo, mas, face às evidências da acusação, acaba por confessar e admitir que andou errado na fé. O que tem de especial o processo de André Garcia é o seu comportamento na cela, as rezas e jejuns que fazia e que foram contadas pelos vigias.

Não vamos descrever os pormenores da separação da carne e dos ossos, o esmiolar do pão para meter migalhas no fundo da malga do caldo, a fim de mostrar que comera, quando, na verdade, nada metera à boca, nem sequer uma gota de água. A carne, bem desfeita, e o caldo vertia-os em seguida no vaso dos dejetos. E a palangana, depois de lavada, a punha “emborcada sobre um ramo de alecrim”.

Depois, lavava as mãos por 3 vezes e... Melhor do que nós falam as próprias testemunhas, em linguagem bem típica e saborosa. Vejam:

— E logo veio aos pés da cama, e de cima dela tirou um roupão de baeta encarnado e o vestiu e se pôs em cima de uma esteira de palma, que tinha à ilharga da cama, e em pé se pôs em oração, olhando para a parede (…) e na grade onde tinha um fumo pendurado (…) fazendo com as mãos repetidas ações, pondo-as abertas no ar e fechando-as (…) e no fim da oração fez duas cortesia com o pé para trás, de mão beijada…

Gostaríamos de terminar com uma oração que ele recitou perante os inquisidores. É uma oração em castelhano, muito longa, pelo que a não podemos aqui reproduzir. Transcrevemos apenas uns trechos:

— Diós soberano y eterno, princípio de los princípios, sin princípio ab eterno, de quien todo el depende, infinito y inmenso, majestad de las majestades, glória y honra de tu mismo (…) Quisiera Señor tener echo un altar en mi pecho y ser sacrário mi alma (…) Fuisteis quien me sacaste del no ser al ser que tengo…

 

Notas e Bibliografia:

1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 1943, de Madalena Garcia; IDEM, pº 8228 e 8228-1, de Ventura Nunes. No seguimento deste processo, Ventura Nunes foi condenada em degredo para o Sardoal, depois comutado para Torre de Moncorvo, de onde fugiu para Castela.

2 - IDEM, inq. de Lisboa, pº 4110, de Gaspar Garcia; pº 7526, de Leonor Nunes Miranda.

3 - Repare-se que, à exceção do juiz e do padre, cuja “nação” ignoramos, todos os outros são cristãos-novos, com “ficha” na inquisição.

4 - ANTT, inq. Lisboa, pº2781, de André Garcia de Miranda.

5 - IDEM, pº 11846, de Filipa Garcia; pº 1811. De Domingos da Costa Miranda.

6 - IDEM, pº 3040, de Isabel Nunes; pº 9995, de Luís Álvares Nunes, estudante de filosofia; pº22, de Brites Nunes.

7 - IDEM, pº 2014, de Fernando Dias Fernandes, tif 439.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães