Sempre que há tormenta no mar com marés vivas há registos de acidentes com pessoas que passeavam paulatinamente pela praia. Que é que leva estas pessoas a escolher dias autenticamente medonhos para se passearem alegremente na areia? É um desafio à Natureza? É a necessidade de adrenalina? É a tentativa de mostrar alguma coisa a alguém? É o gozo que dá o desrespeito pelas regras que o bom senso dita? Não sei, mas a motivação deve ser a mesma que leva alguns a tentar travessias do Atlântico em barcos de 4 ou 5 metros com todo o risco que isso comporta. Há o caso daquela menor que um país (Holanda?) não deixou partir dos seus portos, mas ela partiu doutro país com total apoio dos pais; ou que faz com que pescadores desportivos se dependurem nas escarpas da ponta de Sagres onde o mar, não raras vezes, os vem sequestrar; ou aqueles que esticam a toalha de praia nas sombras exíguas das falésias não atendendo às proibições e muito menos aos avisos; ou ainda os que armados em alpinistas/montanhistas se perdem nas montanhas do Gerês não respeitando as sugestões nem as proibições nem tão pouco os requisitos mínimos; ou também aquele motorista muito popular em Bragança que quando se dirigia a Lisboa com uma carga de batatas encontrou a ponte do Sabor, em Moncorvo, vedada ao trânsito porque o Rio já passava por cima do tabuleiro. Deixou distrair os soldados da Guarda Republicana e passou.
Todas estas atitudes comportam, muitas vezes, perdas de vidas, de bens materiais e custos de resgate. Quanto custa resgatar um náufrago em operações que envolvem a Marinha, a Força Aérea, pescadores etc.? E no resgate de uma turma de caminheiros onde estão envolvidos Guardas da Natureza, Guardas Republicanos, populares, amigos etc.? E além disso a ansiedade de uns, o desespero de outros e o incómodo de todos são custos, mesmo que imateriais, não são negligenciáveis. Mesmo assim quando vemos alguém em apuros tentamos sempre valer-lhe. Assim mandam as Leis de Deus, dos Homens e o espírito solidário. Mas este espírito solidário vem às vezes manchado com tiques vingativos, de ajuste de contas. “Ele que o fez, ele que o desfaça”, “ninguém o mandou”, “ele que se desenrasque” são alguns dos comentários que se ouvem quando alguém se mete numa aventura que está a correr mal. Na verdade é desconcertante o à vontade com que uns deixam o ónus das suas aventuras para os outros como se estes fossem responsáveis pelas suas próprias bizarrias, teimosias e até rebeldias.
É tema actual a consolidação das falésias e os dinheiros que isso envolve. Portugal tem 950Km de costa tem 591Km de praias e 348 falésias. Há 150 praias com falésias em risco. Pensa-se fazer intervenções de consolidação das falésias sempre que haja construções no patamar superior da falésia. E eu pergunto: quem quis colocar a casa num sítio que a tornasse mais esbelta, mais desafogada, de vistas mais amplas, em resumo, mais invejável mas no fundo com riscos, tem o direito de esperar que seja o erário público a criar as condições de segurança que ele próprio negligenciou? Pode passar aos outros o ónus desses mesmos riscos? Tenho as minhas dúvidas.
Todos estes casos têm analogia com Pedrógão. (Pedrógão tomado aqui como título do capítulo respeitante aos incêndios florestais mas excluindo, completamente, as vítimas que circulavam na estrada). Em Pedrógão a mata é, praticamente, toda privada. E nos terrenos privados, exceptuando a canábis e a papoila, cada um semeia o que quer, como quer e sobra-lhe tempo. Assim foi em Pedrógão: cada um fez como quis e lhe apeteceu, têm a mata que querem, com os pinheiros e eucaliptos a entrarem pelas povoações adentro e o mato a ir até à porta de entrada à revelia de todas as recomendações e até da Lei. A tragédia, assim, era mais ou menos previsível. Agora que a tragédia se verificou, exigem desculpas, reparações, indemnizações, etc., como se todos tivessem culpa menos eles. Claro que isto só acontece porque a oposição, numa atitude patética para embaraçar o Governo, aconselhou, “pedagogicamente”, as vítimas dos incêndios a “ser realistas, pedindo o impossível”. Também ajudou a esta deriva reivindicativa o relatório sobre os acontecimentos de Pedrógão feito por uma equipa independente. Um relatório que se pretendia seco e objectivo contém, no entanto, trechos de literatura épica onde não falta, até, o seu “canto IX”(ainda não se sabe se se pode ler ou não). Também não foi despicienda a contribuição do Sr. Presidente da República para este estado de espírito. O Sr. Presidente cavalgou a onda da desgraça e ainda não se apeou naquele seu jeito de “gostar de ser viúva em todos os enterros”. Vai consoar a um lado e fazer o fim de ano noutro, tudo dentro da zona do sinistro como convém.
Por outro lado, a 10 de Dezembro morreu uma mulher em Marco de Canavezes vítima da queda de uma árvore que não aguentou a fúria da tempestade Ana. Só assim. Foi azar. No entanto esta mulher morreu quando fazia uso de uma infraestrutura do Estado em fase de utilização. Aqui, sim, há responsabilidade do Estado. E a tragédia desta mulher não é menor que a dos sinistrados de Pedrógão e a dor dos familiares… é a dor dos familiares.
Irrelevante politicamente – dirão os mais abespinhados de Pedrógão
Não sei se está certo.
Manuel Vaz Pires