Mundivivência

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Minha boa gente, essa saúde como vai? Diz que agora afinal a laranja faz tão bem de dia como de noite. Aquela coisa do “à noite mata” tem de ser revista. Fica o conselho de nutrição e, em caso de estar a falar mais do que sei, o pedido de desculpas aos profissionais de saúde que aqui tão bem escrevem. Ora, por esta altura os largos milhões de leitores que costumam ler este ditoso jornal e esperar sofregamente pelas minhas maravilhosas conversas já se devem estar a perguntar “mas este título não é igual a um anterior?”. Nada disso meus caros, não há erro de impressão. Há um ‘v’ que muda. Da outra vez falei de mundividência, como os países vêem e concebem o mundo, e hoje vou falar com base na minha vivência e experiência do mundo (mundivivência). Viver na Ásia, num país com uma cultura social abissalmente diferente da nossa ajuda-me a ver a nossa cultura e o nosso país em perspectiva. Cidadãos do mundo. Engraçado que quando Sócrates (o filósofo) disse isto (isso, o filósofo grego) o mundo que ele conhecia era cerca de um terço do que é hoje. Ser cidadão do mundo naquele tempo pouco mais era do que ser cidadão da Europa. Hoje vou falar um pouco dessa instituição chamada “lá fora”, essa vírgula no nosso opinar, esse modelo a seguir impreterível e devotamente. Não sei bem onde estou, mas isto não é Europa de certeza. Porque lá fora é que é. Além disso não há placas em lado nenhum, uma pessoa perde-se pelo caminho. Se estivéssemos na Europa estava tudo cheio de plaquinhas, luzinhas e sinais e eu não precisava de andar aqui às voltas para saber onde estou, a abrir o vidro a cada 200 metros e a perguntar “chefe, podia dar-me uma informação” para ficar ainda mais perdido. Lá fora na Europa é totalmente diferente. Mas, perguntemo-nos, o que significará isso afinal? Ou pergunte-me apenas eu a mim mesmo (quanta redundância junta). Deixem-me só arregaçar as mangas. Lá fora é sempre exemplo, mas exemplo de quê? Onde está esse lugar onírico, maravilhoso, essa terra dos sonhos a que o português alude, esse el dorado onde tudo bate certo apesar de, provavelmente, estar sempre a chover. Ora bem. Estava agora a ouvir uma notícia na rádio que dizia que quase um terço dos portugueses vive no limiar da pobreza e outra que os jovens portugueses são os piores em não sei o quê, juntamente com os suecos e franceses, o que de repente acaba por transformar a notícia em algo entre o “hã?!” e o “podia repetir, por favor?”. Em relação ao Lumiar da pobreza, não desfazendo da adversidade de 2,9 milhões de concidadãos, lembro-me de três histórias. A do jovem viajante português na Mauritânia que falava de crise e o anfitrião respondia que sim, que sabia o que isso era, que quando as crises passavam por ali ficam semanas sem ter comida e que quando a chuva tardava em chegar faltava água até para mudar o balde da retrete. O miúdo chinês que caminha todos os dias 10 kms para chegar à escola e chega. No Inverno com o cabelo e as pestanas cheias de gelo como um pinheirinho de Natal, desses muito perfeitinhos como os dos centros comerciais. E sem luz ou aquecimento que o receba na sala de aula. O indiano amigo de um amigo meu que estudava em Espanha. Um dia levo-te à minha aldeia e levou-o mesmo lá para os lados de Tomar ou Torres Novas. E o indiano flipado com a aldeia, à espera de vir a encontrar tudo menos Internet e tv cabo e estradas alcatroadas e saneamento e asseio. O que é que acontece: nestes países – e se se derem ao trabalho de ir somando e excluindo partes verão que é a maioria da população mundial – cada vez que ouvem a ladainha de Portugal e pobreza, Portugal e crise, Portugal e ai vizinha quando chega o frio mal consigo andar, olhe eu ontem queimei-me a fazer o almoço não posso usar esta mão, olhe de um lado o ácido úrico do outro o meu marido que é um vagabundo... Quando ouvem isto é nestas realidades profundas que eles pensam. E é essa a imagem que cola. E depois uma pessoa tem que andar por aí a emendar a mão. Olhe que não amigo, não é bem assim. Ah, mas eu vi na televisão. Pois, mas é diferente. Ah, isso dizem vocês. E pronto, andamos nisto. Três coisas. Primeiro, claro que o “lá fora”, não é um verdadeiro lá fora no sentido global ou mundial do termo, refere-se a uma pequeníssima elite de países cujas sociedades desenvolvidas funcionam e oferecem aos seus cidadãos em geral um conjunto de valores e garantias que infelizmente não são (mesmo!) norma neste mundo. E estão quase todas na Europa. Segundo, é preciso dizer sem rodeios e com naturalidade que Portugal, este Portugal de hoje, pertence a esta elite de países que constituem uma percentagem muito, muito pequena a nível mundial. Terceiro, há que parar com esta neo-psicose de nos termos como medíocres e irremediáveis só porque algures num gabinete de Berlim ou num escritório de Nova Iorque políticos e agências calculistas nos consideram no limiar do lixo. Faz falta vermo-nos de longe e conhecermos melhor os cantos a este berlinde. Vivência ou experiência do mundo, mundivivência.

Manuel João Pires