Não é a voz do diretor a pedir que se respeitem os limites da mancha gráfica, também nada tem a ver com aquela característica que dizem tipicamente portuguesa de encontrar no lado negativo da vida uma zona de conforto; trata-se de constatar que, quando há dois anos, o eleitor depositou o seu voto queria, mais do que uma mudança na governação, virar uma página da história recente do país. Decorridos dois anos, até o cidadão mais distraído verifica que nem meia se virou. E tudo isto seria menos gravoso se se resumisse a mera demagogia; no entanto, tal ilação decorre do que o cidadão comum vive, observa e sente pelo que, contra tais evidências resta formular votos de que, no que resta da legislatura, se inverta o ciclo que nada aportou de bom. Não admira pois que os índices de popularidade tenham caído tanto no último mês.
Num regime democrático consolidado, pretende-se que a dinâmica social se alicerce na saúde, na educação e na economia. Sendo a ordem dos factores arbitrária, há pois governos que privilegiam mais um sector do que outro, sendo que persiste a ideia de que, tendencialmente, a educação e a saúde saem a ganhar com governos de esquerda, enquanto a economia, numa perspetiva liberal, assenta à governação da direita. A ser verdade que a economia já recuperou e que o crescimento económico está a uma velocidade de cruzeiro, era suposto que, neste momento, quer na saúde quer na educação todos sentíssemos melhorias consideráveis. Deixemos de parte a educação, pois ainda a procissão vai no adro, e, que me recorde, será a primeira vez que os professores irão avançar com providências cautelares para travar o concurso de mobilidade interna.
Na saúde, nada sopra de feição. Se ainda há pouco tempo era notícia o aumento da dívida do sector hospitalar, sendo que há meio ano a dívida, só ao sector farmacêutico, rondaria os 844,6 milhões de euros, o certo é que deixaram de se ouvir as reivindicações das administrações hospitalares, não sendo este silêncio acompanhado pelo sentimento dos utentes do serviço nacional de saúde que vivem o drama da negação sistemática dos cuidados básicos. Porque de realidade se trata vamos aos factos.
1.Utente do SNS, 78 anos, queda no banho, sem traumatismos aparentes. Encaminhada para as urgências da unidade local de saúde, realizam-lhe uma TAC à cabeça. Regressa ao domicílio com dores no cóccix; volta ao hospital; administram-lhe analgésicos e só por insistência de familiares é que, passados mais de trinta dias, é submetida a um exame que deteta lesões ósseas. Mera negligência ou indicações para reduzir custos nos exames que o médico pode prescrever?
2.Sala de cirurgia obstétrica encerrada no hospital de S. João por causa de uma praga de piolhos. Fez manchete. A notícia culpa os pombos. Nós, utentes, responsabilizamos a falta de recursos, do mesmo modo que, na ignorância do senso comum, se pode afirmar que a proliferação de bactérias em meio hospitalar resulta da escassez de profissionais que possam realizar um trabalho com qualidade e possam prevenir situações gravíssimas para a saúde pública. Estima-se que em Portugal morram doze pessoas por dia vítimas desta praga.
3.Dia vinte e um de agosto, o paradigma do que acontece por terras de Trás-Os-Montes: dia de festa e noite de arraial em Bragança, capital de distrito. No serviço de urgências dois médicos de clinica geral, e três ou quatro enfermeiros à beira do esgotamento. Uma urgência a abarrotar com casos graves que foram chegando e a impossibilidade de reforço das equipas por falta de recursos. Gritam os seguranças, berram os médicos e correm os enfermeiros.
É do conhecimento geral que o SNS sofre, desde há muito, de um subfinanciamento que o coloca longe dos patamares de excelência que seriam desejáveis. Contudo, sendo uma tarefa fundamental do estado promover o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos, espera-se menos propaganda, mais democracia e que na doença haja, pelo menos, o conforto de um tratamento adequado. Bem queríamos ver a página virada, mas nem sequer meia se virou e, cada vez mais, há a sensação de que o conteúdo continua igual, o que mudou foi a forma de se fazer política.
Meia página
Raúl Gomes