Manuel Espigorno
Num certo lugar de Trás-os-Montes de cujo nome não nos conseguimos lembrar (com a devida vénia ao grande Cervantes), era um arruamento pitoresco, ou pintoresco, na linguagem poética do século XIX… O século XIX dos Garretts e Herculanos que verberaram os camartelos de um estúpido deus “Progresso” que arrasou inúmeros castelos, parcial ou totalmente, e várias construções conventuais após a extinção das ordens religiosas, entregues de imediato a mãos privadas em negociatas e hastas públicas.
Se hoje já não passa pela cabeça de ninguém – julgamos nós - destruir o que restou dos velhos castelinhos até porque se enraizou a ideia de “Monumento Nacional” (se bem que a recente entrega dos mesmos aos senhores alcaides municipais nos faça temer o pior!), ainda passa a destruição de tudo o que é antigo, esteja ou não classificado como de “interesse público”.
E como essas interdições normalmente não abrangiam (como não abrangem) o chamado “património vernacular”, assim foi que as nossas vilas e aldeias foram sendo alegre e paulatinamente “limpas” do seu fácies multissecular (era preciso apagar esse passado de pobreza) dando lugar às famosas “maisons” com janelas de tipo “fenêtre” avec caixilharias “au aluminiô”, “très jolis, très chique”, esgarros e bizarrias que um dia destes serão alvo de teses de antropologia social sobre o (mau) gosto estético do nosso indigenato “aculturado”, com os materiais de construção que lhes puseram à mão, na loja da esquina, somado ao “saber técnico” do pato bravo da terra, munido do “projecto” outrora feito em cima do joelho pelo desenhador da câmara que depois arranjava a assinatura de um qualquer engenheiro (tipo Pinto de Sousa), que também ganhava uns trocos.
Foi assim em vilas e aldeias, sobretudo após os anos 1970’s, que a “revolução” não foi só política (foi?), foi sobretudo urbana.
Quais Cartas de Veneza, quais convenções internacionais sobre Centros Históricos, quais UNESCOS, quais Conselhos de Europa, quais técnicos de Património encartados com cursos e cursinhos que as universidades – sobretudo privadas – por aí despejam, qual “opinião pública” pretensamente mais culta e “evoluída”, coisa de elites urbanas, que até mesmo nas urbes, quando toca aos interesses tudo se cala e consente, que isto de “patrimónios” não enche barriga e pouco ou nada interessa, principalmente num “país” em que o jornal que mais vende é a Bola, e pasquins afins, os das tretas de faca e alguidar.
Assim sendo, quando damos conta, o que estava, já era…- Já era um conjunto de casas do século XVI, numa terra cujos mandantes vêm depois encher a boca com o “turismo” e com os “montes de encantos”, casario ainda do tempo de judeus ou cristãos-novos cujos nomes até sabemos e que estão na Torre do Tombo, em centenas de processos que fazem as delícias dos historiadores. Estudiosos que, na volta, vinham ao “terreno”, ver de onde saíram esses sentenciados. E na volta escreviam livros, que traziam mais gente. Da próxima vez que vierem, encontram só o sítio… Eram. Eram uns “arruamentos estreitinhos”, restos de um urbanismo antigo que conferia ao burgo uma identidade histórica, vislumbre de outros tempos, isso que os tais turistas da “elites cultas” vinham procurar, uma vez que do cimento e do betão estão eles fartos. Mas agora – dizem-nos – aí será o alargamento de um largo, que muito vai valorizar, desafogando as vistas (curtas) de uma unidade de turismo rural mesmo defronte.
Dizem-nos ainda que todo o quarteirão vai abaixo, como mais à frente já se foi outra casa centenária, com uma grua enorme a assinalar a reconstrução, em cimento e betão, que o deus “Pugresso“ não pode parar!
E assim tem sido, nesse lugar de cujo nome não nos lembramos, aí como em todo o lado, se vão abaixo as casas antigas, para se reconstruir – quando muito – umas “pastichadas”, por vezes em nome da famosa política dos “alinhamentos”. Sim, que é preciso alargar essas estúpidas vielas antigas feitas à medida de carros de bois, que agora urge acomodar à largueza de avenidas de terras cada vez mais despovoadas até ao deserto absoluto, mas que convém deixar para a posteridade convenientemente destruídas, tal como “campus ubi Troia fuit”…
Só que, enquanto a população vai mingando, o pessoal ainda vota. E numa terra onde não se passa nada, este alvoroço de máquinas em movimento dá uma impressão de “Progresso”, de que se está a “fazer coisas”!
Depois com o arquitecto da câmara ou com projecto encomendado, desenha-se para ali um pavimento de granito bujardado ou de lousa de Valongo, mais uns banquinhos e umas floreiras e isto até dá votos. O povão gosta e aplaude. Talvez se consiga mais um mandato…
Soubemos pelos jornais que em 2016, no âmbito do Norte 2020, até foi aprovado um grande financiamento de 1,9 milhões de euros para recuperação do “centro histórico” do dito lugar de cujo nome não nos recordamos.
Ingenuamente pensámos que a dita recuperação passava pela preservação desse casa rio multissecular, utilizando os materiais e as técnicas construtivas tradicionais, tal como vimos e ouvimos num Congresso
Internacional sobre Centros Históricos, em Guimarães, em 1989, quando a Arqt.ª Alexandra Gesta iniciava um processo que justificou que a classificação da “cidade-berço” como Património Mundial. Sim, fomos ingénuos. Aqui não há arquitectas Alexandras Gestas e a gesta é outra: é a de uma voragem iconoclasta que não descansará enquanto houver de pé uma casa centenária, tal como no século XIX destruíram as torres do velho castelo do dito lugar. Por acaso só sobrou uma torre, salva pelo relógio e por uma sineira, já que a igreja ao lado, não tinha, nem tem, campanário.
Depois apela-se ao Turismo (de espanhóis e até de chineses), para virem conhecer “a vila mais manuelina de Portugal”.
Ironias…. Como não deixa de ser irónica uma tabuleta com a frase lapidar que a foto ilustra [Foto 5 – sem comentários], de um antiquário do século XIX, chamado Félix Alves Pereira, colocada, à cautela, numa zona nova, sem qualquer monumento ou construção antiga por perto.
Como costumamos dizer, a principal indigência deste país não é (só) económica. É, acima de tudo, cultural, sendo que Cultura não é coisa que se compre no supermercado.