Muito bom dia a todos. Espero que estas palavras vos encontrem de boa saúde e de bom ânimo e que o advento traga mais paz e calor aos vossos dias. Hoje venho contar-vos um episódio ocorrido comigo no ano passado. Como nessa altura foi noticiado pelos meios de comunicação, a Itália referendou a população sobre a redução do número de deputados e de senadores. Após a votação, 65% dos cerca de 50 milhões de votantes disseram “sim” e o parlamento foi reduzido em cerca de um terço dos deputados. Concretamente passou de um total de 945 deputados e senadores para 600. A partir da próxima legislatura a Câmara dos Deputados terá 400 deputados (630, atualmente) e 200 senadores (em vez dos atuais 315). A questão é que de forma inesperada também acabei por ter voto nessa matéria numa história que envolve três países e três continentes. Um dia fui levantar o correio de um casal amigo, a pedido de uma família de argentinos que vive aqui, mas que neste momento está na Argentina. É uma família que também tem nacionalidade italiana por via dos progenitores, aliás, eles também já viveram vários anos em terras transalpinas. Acontece que entre as cartas recolhidas estava uma proveniente do consulado de Itália em Cantão, embora não fosse essa a missiva que o destinatário andasse ansiosamente à procura. Quanto à carta endereçada pelo consulado italiano, o destinatário mandou- -me abri-la para ver do que se tratava. Depois de tomar conhecimento do seu conteúdo, disse- -me para eu me livrar dela e dar- -lhe o destino que eu bem entendesse. De modo que, depois de a abrir e perceber do que se tratava, entendi destiná-la para aquilo a que estava destinada. Além do mais, todo o trabalho que requeria era pegar numa caneta e fazer uma cruz no lugar do sim ou do não, o resto já vinha tudo pré-cozinhadinho, era só seguir as instruções, pôr uns envelopes mais pequenos dentro de outros maiores e colocá-la no marco do correio mais próximo. Um voto por correspondência de longa distância, submetido por quem à partida não era para ser tido nem achado sobre o assunto. Por cartas e travessas, senti-me um verdadeiro cidadão europeu, embora sob o nome de outro menos interessado. Não foi bem icardiar, foi só submeter um boletim, fiz apenas o subscrito seguir o seu secreto e cívico destino. A propósito do verbo que utilizei na frase interior, informo que leu bem e que foi mesmo isso que eu quis dizer. “Icardiar”, uma palavra que vos trago precisamente da Argentina, e que tem uma história que merece ser contada, envolvendo como principal protagonista o jogador Mauro Icardi, avançado da seleção alviceleste, anteriormente no clube italiano Inter de Milão e, presentemente, no Paris Saint-Germain de França. Este jogador, há coisa de meia dúzia de anos, roubou a esposa a outro futebolista igualmente famoso na Argentina (Maxi López) arrebatando para ele a mulher e os três filhos dela e deixando o ex- -companheiro em evidente fora de jogo. De criança que pedia autógrafos ao ídolo, até jogar no mesmo clube e passar a ser amigo de trazer por casa foi um passinho, ou um passe fácil, se quisermos. Após o drible, a nova mulher tornou-se agente de Icardi e a sua condição de (literal) influenciadora, assumiu ainda maior visibilidade depois deste romântico conto de farpas. Uma novela com todos os ingredientes ao melhor estilo Pôr-do-Sol, com um elenco composto por ricos e famosos, e como cenário do fundo o fervoroso e religioso mundo do futebol. É deste guião que fez correr rios de viperina tinta (e continua a fazer até hoje) que brotou o termo “icardiar”, comummente usado pelos argentinos. É hoje usado nesse país nas mais diversas circunstâncias como sinónimo de roubar (passionalmente), aldrabar, trapacear, mentir, etc... O vocábulo é tão correntemente utilizado que segundo outro amigo que aqui esteve (não o da cidadania italiana) e com o qual tinha épicas conversas sobre futebol (defendia que os programas “sobre futebol” ao estilo CMTV estão hoje para os homens como as revistas cor-de-rosa estavam para as mulheres), segundo ele, “icardiar” é tão usado na Argentina que “deve estar muito próximo de ter uma entrada no dicionário”. É verdade que do futebol se extraem muitas palavras e expressões aos países que não chutam este desporto para canto. No entanto, apesar de termos tido jogadores lendários dentro e fora das quatro linhas nunca nenhum deles se tinha ativa e coloquialmente transformado em verbo. No princípio era o futebol, agora é o verbo. Da terra da “Mão de Deus” e do próprio Diós em pessoa abençoado pelo número dez da glória eterna, chega-nos o contributo de um jogador deveras improvável dadas as suas pouco impressionantes exibições. Não sei se é a primeira vez que o nome de um futebolista se verbaliza ou entra por um idioma adentro para ficar, mas com toda a certeza será a primeira vez que acontece não pelos seus atributos dentro de campo, mas pelas suas aventuras fora dele. É também a primeira vez, até prova em contrário, que este inspirado e semanticamente redondo vocábulo pisa relvados portugueses. Por isso, companheiro leitor, tente não icardiar o homem ou a mulher do próximo nem ande por aí a icardiar os outros, porque é provável que mais cedo ou mais tarde o apanhem. Agora em relação ao vocábulo, use e abuse dele enquanto for original nestas paragens. Se não o entenderem faça como eu, sempre tem uma história para contar. Um abraço e bom advento!