Já lá vão uns bons aninhos, ficou-me na memória uma resposta dada pela saudosa e brilhante atriz Beatriz Costa, num programa da RTP, quando questionada sobre se gostava de homens com pêlos no peito: “Sim, gosto de homens peludos; não goste é de cabelos na sopa”. À luz da mentalidade daquele tempo, “aceitava -se”, como por oposição à mulher (um ser poeticamente belo e inspirador), a sentença de que “o homem se quer feio e a cheirar a cavalo”. Uma opinião, diga-se, de que nunca fui adepto. Pode parecer estranho submeter à reflexão um tema como este, capilar. Faço-o na qualidade de interlocutor anónimo e furtuito duma “meçoila” que dá pelo nome de Filomena Cautela, figura esganiçadamente irritante, por esta, recentemente, num programa de rádio, se ter referido, em tom jocoso, ao clube ( a que eu orgulhosamente pertenço) dos homens de pêlos no peito e nas pernas, como sendo, por outras palavras, seres cavernícolas. Ao longo de milénios, o ser humano foi sempre marcado, na sua passagem, tanto pela natureza como por questões culturais. Hoje em dia, muito por culpa de certos movimentos que estão na origem do grito do Ipiranga, há, felizmente, uma larga discussão em torno daquilo que cabe e é devido a um e a outro. Até há bem pouco tempo era comummente aceite pela sociedade, marcadamente machista, a ideia de que, por exemplo, o lugar das mulheres era na cozinha, e que pintar o cabelo era exclusivo das mulheres. Os poucos homens que tinham a coragem de se “apropriar” daquilo que culturalmente não lhes pertencia, faziam-no sem o assumir, por vergonha. Felizmente, certos estereótipos, que durante séculos fizeram “lei”, estão gradualmente a esbater- -se: as mulheres bebem, nos bares e nos restaurantes, com orgulho e jactância, a bebida de Baco. Os homens apregoam, com alarde, que são eles quem cozinha em casa, depilam-se (por modismo) dos pés à cabeça. Nos finais dos anos 70, e durante a década que se lhe seguiu (período da minha juventude, vivida intensamente), estava na moda fumar uns charros. Eu, o meu irmão Mário, o Zé Gomes, o Fernandinho, o Zé Lopes, o Luís Parente, o João Pinheiro, o Manuel Barros, o Jorge Tiago, o Armando Reis, o Guedes e outros que tais, nunca aderimos à moda, ou por não sentirmos o chamamento, ou, provavelmente, por sermos rapazes muito populares e extrovertidos, pelo que o rir era natural e espontâneo em nós. Como resultado da não adesão, os aderentes apelidavam-nos de “caretas”. Isto para dizer que, e ainda que estivesse na moda enrolar o “gramado” na mortalha, nenhum de nós teve necessidade de o fazer. Como a vida é feita de escolhas, não tenho dúvidas que, voltado a cassete atrás, tomámos a decisão certa. Não obstante pertencer à colheita dos anos 80 (potencialmente mais resistente à mudança), fruto do berço que me criou, convivo pacificamente com a extravagância do Outro, e, estranhamente, “rendido” à ideia da crescente desmasculinização do homem, do culto do corpo e do vintage style, imperativos dos Adónis do século XXI. Parece que vivemos num mundo de valores subvertidos. Aqueles que até há bem pouco tempo viviam, na “clandestinidade”, uma vida reprimida e de recalcamentos, são hoje os mais fervorosos detractores da maioria que recusa ser refém das excentricidades na nova Ordem. Porque não vejo reciprocidade do outro lado, no respeito pela diferença, e porque nós, gente de pêlo, somos vítimas de chacota, sem, no entanto, nos prestarmos a ela, estou a pensar seriamente fundar o clube dos “da malta da camuflagem corporal”, como acontece, por exemplo, com o “clube bigodes”, que se encontram anualmente, em convívio, quais ex combatentes da guerra do ultramar. Importante é termos a lucidez suficiente para relativizar as coisas. Esta é tão – somente uma discussão do sexo dos anjos.
António Pires